terça-feira, 6 de julho de 2010

AMOR : esse estúpido sentimento




Amor...
Duradouro, perene.
Firme e compacto.
Resistente às intempéries.
Por vezes, corrupto: hiato de desejo efêmero
Por qualquer passante...

Amor...
Inabalável, inexorável,
Cravado na alma de quem ama,
Na profundeza da gente humana,
Onde nem o sopro violento de Favônio
Balança.

Amor...
Passeia pelas veias,
Que no crepúsculo da vida
Rende-se ao senhor tempo...
Amante cansado...
Amando a amada por entre os anos...

Soluça e baixa a cabeça.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

PARTE DOIS - O GATO

–Vai parar onde? (B)
–Parar? Parar pra que? Abre uma, dá um tirinho aí na sua carteira mesmo, se for boa a gente vai lá em casa e bota no prato...(O)
–Tá sozinho?(B)
–A mulher viajou, só tem o gato por testemunha...(O)
–E se for baldeada?(B)
–Ora... A gente derrama tudo aqui no carro mesmo, bebe umas quatro cervejas e vai pra casa dormir...(O)
–Bom, essas duas bastam, né? Não vou ficar "no saci" entrando em boca de cocaína de madrugada. (B)
–Claro, a gente nem tem mais idade pra isso... (O)
–Que papo o seu de Deus, cara...(B)
–Besteira... Rola... E você emendou com um bocado de coisa do arco da velha.(O)
– “Arco da velha”, tá retado hoje... Aprontou aí? Vou encostar e “tum”, jogo rápido, viu?(B)
(tum) (O)
(tum) (B)
–Pôôôrraaaaaa! (O)
–Veneno da pôrra!!! (B)
–Vamos lá pra casa. (O)
–Vamos comprar cerveja, tem o que beber lá? (B)
–Um conhaque velho da pôrra. (O)
–Lacrado? (B)
–Pôrra de lacrado, tem uns três dedos, pare no posto pra umas latinhas, a gente aproveita desce da outro “tum” e bebe duas ou três lá mesmo pra amenizar a travação contemporânea. (O)
– “Travação contemporânea”, puta que pariu... (B)
–Temos cabedal para usar a linguagem decentemente por que não usar? Estamos de folga... (O)
–Mas é perigoso usar “contemporâneo”. (B)
–Por quê? (O)
–Fica parecendo que essa travação vem se arrastando há décadas e não é assim... Eu parei e você continuou. (B)
–Continuei, mas parei também... Se não a mulher me largava. (O)
–Você parou de cheirar por causa da mulher... (B)
–É... Sei lá... Talvez... Parei por algum motivo, não via mais “razão”, como os caretas dizem, pra cheirar cocaína... Aí, aproveitei que descolei uma mulher gostosa e parei... Ela também não gostava... (O)
–Mulher nenhuma gosta, a não ser aquela maluca que você arranjou naquele dia da eleição do Diretório dos Estudantes, lembra? (B)
–Lembro, a gente emprenhou a urna e derrotamos os partidários. (O)
–Pôrra, isso tem uns quinze anos, né não? (B)
–Tem. (O)
–E a criatura virou deputada, deve cheirar pra caralho lá no congresso. (B)
–É... O posto, para. (O)
–Bota em sua carteira mesmo, a gente dá um “tum” aqui... Pra gente não ficar saindo para o banheiro e despertar curiosidade de careta sem leitura...(B)
–É verdade...”tum”... Toma... (O)
– “tum”... Será que a vida era melhor naquela época... Naquela contemporaneidade” diria você... (B)
–Alguma coisa acho que sim... Acho que tinha mais respeito uns pelos outros... (O)
–Como assim? A gente não respeitou as leis eletivas para emprenhar urna... (B)
–Besteira, ali era uma eleição de estudante... (O)
–É, mas quem garante que sua namoradinha muito doida da época e hoje deputada não fez, ou faz, falcatruas dessa estirpe na política “à vera”? Você garante? Acha que ela respeita a legislação e o que diz o TSE? (B)
–Eu não garanto nada e não é só ela que apronta ou desrespeita as leis, ou manipula votos, ou sei lá... Os caras tão aprontando com o dinheiro público, desrespeita o meu, o seu bolso, o mundo inteiro fica sabendo e eles nem aí... Caras de pau. E a gente já conversou sobre isso lá na boca. (O)
–Pega as cervejas, o troco e vamos... Você disse que está sozinho, não foi?(B)
–Eu e o gato. (O)
–Pluto? (B)
–Não, chama-se “Félix” (O)
–Ah, bom! Fico descansado... Ele não é delator como o de Poe... (B)
–Não, que é isso? Ele gosta de leite... (O)
–Caça, pelo menos? (B)
–Nunca vi barata nem rato lá em casa... À noite ele fica ligado. (O)
–E o carro? Aquela sua rua é cheia de ladrão. (B)
–Deixe de preconceito, o bairro é pobre, mas é limpinho, e os “bichos soltos” da área conhecem você... Sabem que você é o professor maconheiro... Isso é uma glória para eles, sabia? (O)
–O fato de eu ser professor ou maconheiro? (B)
–Os dois. (O)
–Coitados... Conheço um médico que só atende depois de cheirar uma grama. (B)
–E o engenheiro que fumou pedra e construiu a piscina sem ralo. (O)
–Conheço esse também (risos)... (B)
–Aqui... Pode deixar o carro aqui, sem problemas, a rapaziada ali olha... (para os jovens sentados na calçada que os observavam ao sair do carro) “Aí moçada dê um look, no móvel, se ligou?” (O)
–Aí moçada! (B)
(escadas)
–Não repare a bagunça... aliás você também é bagunceiro. (O)
–Esqueceu que conheço a casa? (B)
–Fizemos muitas farras aqui, não foi? (O)
–Isso... (B)
–Bichaaaano, bichaaaano, ali... Coloque as cervejas na geladeira e traga um prato da cozinha... Vá lá, a casa é sua, você sabe todos os caminhos, vou colocar leite para o gato... Bichaaaano... (O)
–Sempre literatura fantástica... (B)
–É, sempre foi meu fraco, esse livro é bom... Tem um “Ladrão de Cadáveres” aí, muito legal, “Bicho Papão” também... (O)
–Dino Buzzati? (B)
–Isso, não gostei muito porque ele matou o bicho – papão, mas a narrativa é ótima... “O Homem da Areia”, excelente e “Teleco, o coelhinho”, conhece?(O)
–Conheço... O primeiro de Hoffman e o coelhinho de Rubião, fala-se pouco desse autor na literatura brasileira...(B)
–São as tais injustiças dentro da literatura... A literatura é como a vida...(O)
–Aqui, vem, “tum”... (B)
– “tum” (O) A cerveja...
tum” (B)
–Outra já? “tum” (O)
–A cerveja e o brinde, a nós dois, a Félix que está quietinho bebendo seu leitinho e à literatura que faz com poucos conheçam muitos... (B)
(brinde)
–Pôôôrraaaa, caralho, puta que pariu... (B)
–O que foi? A parada caiu no chão?(O)
–Não...(B)
–Aaaaaaahhhhhhh! (O)
–Caiu no leite do gato. (B)



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domingo, 27 de junho de 2010

PARTE UM - NA BOCA

Você acredita em Deus? (Osório)
E isso agora?(Bocanegra)
O que?(O)
Essa pergunta que você me fez...(B)
O que tem? Você acredita?(O)
Agora não é hora para falar nisso.(B)
Tem hora para perguntar se alguém acredita em Deus?(O)
O que você tem?(B)
Responda, caralho.(O)
Você acredita?(B)
Perguntei primeiro.(O)
Sei lá...(B)
Acredita, não acredita? Ou vai dar uma de durão e dizer que é escritor ateu...(O)
Não sou durão e não sou escritor.(B)
Não é, mas escreve versinhos “calientes” para las ninas... Entonce, já se arrependeu alguma vez?(O)
O que você tem?(B)
Nada... Só pensei em Deus agora...(O)
Então fez algo e você que se arrependeu...(B)
Não... É preciso se arrepender para acreditar em alguma coisa?(O)
Deus não é alguma coisa...(B)
Você acredita, então... Por essa fala sua, você acredita em Deus... Não acha que está na hora de sair da mundanice... (O)
Não... E agora?(B)
Agora o que?(O)
Essa ladeira.(B)
Engate a primeira e suba.(O)
É de barro, pode derrapar...(B)
Você dirige bem.(O)
E lá em cima?(B)
Vai chegar um cara aí na sua porta ou na minha aqui no carona e aí...(O)
Ele já vem com o bagulho?(B)
Às vezes... Se conhecer o carro sim, mas você nunca veio aqui, veio?(O)
Aqui, não.(B)
Então ele vai encostar, olhar, dar muxoxo de traficante durão, perguntar quanto quer, essas coisas...(O)
Tá armado?(B)
Não sei... Acho que não. (O)
Isso é uma tristeza... A gente não tem aptidão para ser feliz, tem vir aqui, comprar droga e depois sair por aí sem destino, doidaço...(B)
A vida do homem é vento...(O)
Onde você foi tirar isso?(B)
Sei lá... Acho que foi um cara religioso desses aí que ficam enchendo o saco dos outros na rua, para um, para outro, e diz que é a palavra do senhor, acho que algum desses me falou isso outro dia...(O)
E aí você vira para meu lado? É vem o cara... Cadê o dinheiro...(B)
Qué quanto?(TRF)
Duas.(B)
Pare ali, ó... E aguarde...(TRF)
Será que esse cara vai demorar?(B)
Tá com medo?(O)
Quem tem cu tem medo...(B)
Você acredita em Deus?(O)
Vá pra pôrra... Você acha que Deus vai proteger quem vem aqui comprar “barato”? Ele deve tá retado vendo a gente aqui... E se ele existe, tá ocupado com quem tem fome.(B)
Mas isso é um problema dos políticos e não de Deus... Deus colocou a comida no mundo, basta ser bem dividida...(O)
Ah! E você acha que político algum vai dividir o quinhão das cuecas?(B)
Das cuecas, não, mas o que sobra.. e falei da divisão de comida.(O)
Ora, ora, meu amigo, você com quarenta anos e tamanha leitura ainda não conhece os homens do mundo? Tudo que “os homens” fazem é para matar os outros de fome... Sabe aquela história que um cara dá uma facada no outro com uma faca enferrujada? Se não morrer da furada morre do tétano... Agora diga que isso é clichê... Tudo é, e existe, para quem tem tudo, quem tem tudo quer o nada de quem nada tem... se liga, cara...(B)
Sei não, enquanto a gente se aplica aqui, sai do mundo consciente os caras se aplicam por aí, aproveitando nossa consciência inconsciente e devoram tudo que é do homem... Você tá certo... Eu acho...(O)
Claro...Outro dia vi na televisão que a mulher caiu de uma maca num hospital público quando ia dar à luz... Isso é só pra exemplificar o que a gente falava, mas é o seguinte: não sou de assistir TV, não acredito nessa massificação de informação que é vomitada, pra mim neguinho inventa mais do que informa... É mais prático pra fomentar a improdutividade racional... E a fome que tanto preocupa você e o Deus que está em sua cabeça desde cedo.(B)
Improdutividade racional”... É tudo aberração... Piores do que “Freaks”(O)
Efeito “Montag”, ou “Fahrenheit 451”.(B)
É verdade, um breve exemplo disso é nossa infelicidade conjunta em cheirar cocaína...(O)
Você acha que somos infelizes e improdutivos porque lemos? Ou porque cheiramos? Ou os dois ?(B)
Os dois... Mas o que há de fazer nesse mundo globalizado? Pensar... Sucumbir...(B)
Confiar nas autoridades ou em Deus? Eis a minha pergunta...(O)
A sua pergunta me deixa sem resposta... Sobretudo com esse mundo de pobreza. (B)
Que pobreza? Essa daqui da boca ou do mundo inteiro?(O)
Esse cara tá demorando.(B)
Aqui, saia fora... (TRF)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

TEXTO INÉDITO, ESQUECIDO, ACHEI POR ACASO AGORA...

A Patroa era escritora. Ou jornalista. Talvez professora das histórias que se contam nos livros, não tinha certeza de qual ocupação aquela mulher exercia. Só sabia que ela vivia debruçada sobre livros e papéis. Pensando e escrevendo. Seu nome deveria ser Pensamento. Conhecia nomes esquisitos e difíceis. Falava ao telefone em outras línguas com uma naturalidade original de quem mora no estrangeiro. Encabulada, Lúcia chegou perto da escrivaninha em que ela trabalhava. Pescou alguns papéis, mas não entendeu nada. Contudo ficou olhando maravilhada as letras, pôde perceber com a real dificuldade de leitora desacostumada que se tratava de poemas. Pois havia em cima da mesa um papel ofício com um nome escrito bem no meio. Poesia. Lembrou-se de uma vez, lá mesmo na casa da Patroa, de um jantar oferecido. Lúcia não foi para casa, ajudou nos petiscos, bebidas e no prato principal. Era um jantar para um tal escritor de outro estado, era muito famoso e importante, pois todos o tratavam com reverências e mesuras. Ele, o escritor, não gostava de muita lambição, rapapé. Fazia careta nas costas daquele que lhe lambia as botas. Contudo uma frase que ele falou não se sabe para quem, ficou para sempre na memória da empregada.

_Mas para que serve mesmo a poesia? Para que servem esses versos que ficamos horas a pensar e depois de escritos ficamos a conversar sobre?

Não houve resposta. Houve sim um silêncio terrível. Parecia até que o jantar tinha acabado. Entretanto, logo depois à omissão sepulcral, o tal escritor soltou uns versos de Mário Quintana. Eram assim:

Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu lhe saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto...”


Em seguida, ele mesmo completou.

_A leitura de um poema não tem ou não busca significado e provavelmente não serve mesmo para nada, contudo o leitor terá naquele momento único o prazer deleitoso de ser abraçado e amado pela palavra... Os dois amantes, o leitor e a palavra...

sexta-feira, 7 de maio de 2010

NOSTAGIA URBANA E SAUDADES DE UM AMOR NÃO CONCRETIZADO



Foi num clima de romance que fui pela primeira vez à Ponta de Humaitá, na Boa Viagem. Tinha dezesseis anos e Berenice quinze. Foi a ela que ofereci “chega de saudade” como se fosse eu que tivesse escrito, dois dias depois ela descobriu tudo ao ouvir um vinil que eu mesmo presenteei e não lembrava. Tom & Vinícius. Zangou-se com razão, daquele dia em diante comecei a reparar melhor as imagens ao meu redor e rabiscar letras genuinamente minhas para Berenice. Pensamos assustados, já no Humaitá, que todo aquele sol que ali se ia, cairia sobre nós e nos engoliria. Era um sol enorme e alaranjado, parecia estar se espreguiçando, que a Ponta de Humaitá oferecia a nós dois amantes. Eu jamais esqueceria Berenice e seus olhos oblíquos e tristes. Seu rosto liso e macio que dava forma a sua voz pueril e seus cabelos de Iracema. Naquele instante ali, esqueci a seleção de Telê. Só Berenice dissuadia meu pensamento canarinho, até então o que me importava era ganhar a copa do mundo em Barcelona, Madri ou nas ilhas Tenerife. Sonho que se frustrou mais uma vez naquelas datas, como se sabe na longínqua alcova do estádio Sarriá . Então andei com Berenice sobre a cidade de São Salvador.

Desde sempre sentia meu envolvimento intrínseco e peculiar com os lugares que ia, sobretudo com meu pai. Lembro-me perfeitamente que toda vez que chegávamos, eu e meu pai, a praia de Itapuã, aquelas ossadas gigantes de baleia espalhadas sobre a praia me davam medo e dor de barriga. Era filho da cidade e de vez em quando ouvia umas gargalhadas invisíveis de satisfação comigo. E achava que a natureza de Salvador ria para mim. A apreensão também me assaltava quando ouvia minha mãe falar de Fundação Politécnica. Era o dentista. Tinha pavor, aliás, ainda tenho. No entanto quando chegava à Avenida Sete de Setembro e via o movimento, já corriqueiro dos anos de chumbo, anos setenta, de AI’s e estrelas de ombreiras mal polidas, onde todos estavam submetidos à obediência civil americana, estúpida, grosseira e mortífera, sentia, entretanto e paradoxal ao movimento turvo, um alívio de amálgama. De uma forma ou de outra estava protegido em minha cidade. Praça da Sé e o Elevador Lacerda, Farol da Barra e a praia de Ondina.Tudo romântico e paisagístico, gostava de beber Fratelli e crush. A vida era muito mais que um sol estático, amigo Drummond. No entanto esse conjunto de coisas e sentimentos de urbis deve-se somente à minha existência. Em fazer parte do espaço que não sei como me escolheu e acolheu. Sem ser poeta e andando em lodaçais macadames, bebo, fumo, desejo, julgo e gargalho em Salvador. Um riso largo, caliente e tropical. Ao mesmo tempo em que entristeço, não sei mais onde está Berenice. Torno-me então poeta e sinto toda a quentura morna, modorrenta e cheia de pachorra, de um pôr do sol na lembrança tupi da índia Berenice. Suas frases tremidas e arfantes ao brincar comigo na rampinha do Teatro Castro Alves no dia que o papa morreu. Ela sumiu, virou-se e esqueceu que existo.

Agora estou na rua, como um miserável vagabundo. Rindo à-toa, sem itinerário, mas na rua, como um poeta sem casa engolido pela cidade de santos sábios velhos e africanos. Pregando poesia e arte nessa infinita inquisição. Na contramão, há as pregações irresponsáveis de inquisidores que não querem o poeta por perto. Ele, eu o poeta, bole insistentemente com a consciência, e a inconsciência coletiva ou singular, de quem pára para ouvi-lo. Deus e o diabo estão por aqui, na rua. Na 28 de Setembro, na Travessa da Ajuda, no Porto da Barra. Na madrugada com aqueles que servem à literatura marginal. À margem do querer e eu também escrevendo sem margem. Do ler, romantiquê. Não mais fui à ponta de Humaitá e agora só bebo conhaque. Hoje sem Berenice meu pensamento é imundo. Vivo nos becos sombrios ao lado do carnaval, na Rua do Sodré e na Gamaleira sem dilúculo de dedos rosados. Sem crepúsculo sonolento e romântico lá da ponta...

terça-feira, 4 de maio de 2010

COSME DE FARIAS (OU O QUE ACONTECE DE FATO COM OS JOVENS ATUALMENTE?)




Com olhos e ouvidos abertos para o social, ilibado, incorruptível, qualidade rara nos dias de hoje aos homens públicos e não públicos, pobre, e mais importante, um ser pensante. Era Cosme de Farias. Contam-se histórias interessantes sobre o rábula. Numa delas, diz-se: o major sentindo-se revoltado com a injustiça praticada contra um réu no tribunal, levantou-se e, ao lado do juiz e dos jurados, ficou por ali com ares de quem procurava algo pelo chão. Intrigado, o juiz perguntou o que ele procurava, eis a resposta “A justiça, meu senhor, que nesta casa anda escondida”. Debatia com o promotor e usava sua oratória ousada e eloqüente. No último dia dois de abril seria mais um aniversário de vida de Cosme de Farias.

O major Cosme de Farias saiu de Paripe onde nasceu para dar seu nome a uma rua de barro, em Brotas, antes chamada de “Quinta das Beatas”. A rua Cosme de Farias era uma quietude bucólica, talvez até lhe coubesse um movimento árcade, “carpe diem”, Cosme de Farias! Isso outrora. Hoje é uma praça de guerra, “Faixa de Gaza” de Brotas, jovens ensandecidos sem motivo aparente para tanta sandice sanguinária, mas cegos para as razões de sobra para indignar-se. Indignar-se pela acentuada (in)diferença social, a má distribuição de renda e emprego, a escassa cultura, escassez da cultura de pensamento e raciocino não a do quadril que estimula perversão ao invés de algum pensamento crítico para mudar ou transformar as coisas da vida, indignar-se pela falta de conhecimento em geral. Indignar-se pelo próprio desinteresse aos livros à mão cheia que estão nas prateleiras das bibliotecas criando mofo, teias de aranhas e traças pelo não uso. Mas não, matam-se. Simplesmente, matam-se. Não sei se vale de alento repetir o bordão da comunidade que se conforma fácil e se acomoda prisioneira dentro de casa: “a violência está em todo lugar”... Está mesmo, mas...

Cosme de Farias morreu pobre, deixou um legado de sabedoria para a grande maioria dos seus vizinhos. Parece que tão valiosas informações não foram passadas para gerações vindouras, excetuando aos que de fato trabalham.
Tudo indica que deixou pérolas para os porcos.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

TRECHO DE UM DOS CONTOS QUE COMPÕE O LIVRO "O VELHO"

Um dos meus contos que mais gosto - TRANSE RITUALÍSTICO

Foi quando lambi Eleonora pela primeira vez que a minha memória brilhou. Fingia que dormia e ia, em seguida, espreitar minha mãe e meu pai antes de dormir. Ouvia de mês em mês meu pai dizer para minha mãe.

– Ah, Luciana! Que maravilha de sangue.

Ele estava com a cabeça enterrada entre as pernas de mamãe. Sempre tive curiosidade de saber o que aquilo significava e voltava para a cama com o gosto de sangue na lembrança. Ficava intrigado também com o sussurro de pathos de minha mãe emitia. Parecia uma comoção empírica que ela tirava do fundo da alma. Ao mesmo tempo a angústia e o remorso de pecador me perseguiam lado a lado. Sentava na cama e rezava o pai-nosso e a ave-maria.

– Não me castigues, ó Deus, todo poderoso! Livrai esse filho, ainda menino, da expiação luxuriosa.

E então estudava Latim para me tornar padre. Havia um sacerdote estranho e esquisito, que contava histórias escabrosas e em todas as oportunidades as contava num ímpeto irregular, olhando para mim. Como se soubesse o que eu seria em poucos anos a partir dali. Tinha uma fundura nos olhos e um olhar penetrante de quem quer hipnotizar. Todos tinham medo, menos eu. Eu ria de través querendo despertar um desejo obscuro. Foi assim que percebi qual a data em que meu pai chupava o sangue de minha mãe. Era todo dia vinte e oito. Cresci espionando todo dia vinte e oito do mês. Quando era adolescente, lá pelos quinze, dezesseis, eu olhava e depois me masturbava gozando um prazer estranho. Prazer de ter minha mãe. Queria ser Édipo. Acho que minha mãe chegou a perceber, pois um dia, ao andar pela sala, ela baixou os olhos em mim e me viu teso olhando as suas ancas.

E assim fui crescendo, esperando ter uma mulher e sem conseguir nenhuma.

Eleonora chegou para cuidar de meu pai. Era uma sarará bonita e grande, cheia de sardas pelo corpo. Meu pai ficou estafermo, não servia mais para nada. Minha mãe ia receber o soldo da aposentadoria e deixava a metade na farmácia. Se não fossem as casas de aluguel que construiu, teríamos passado fome. Eu não sabia o que eu mesmo era. Não consegui ser padre. Um dia vi minha mãe conversando e gesticulando muito forte com o sacerdote. Não sei o que houve, mas depois desse dia ela nunca mais foi, nem me deixou voltar à igreja. Ali, naquele tempo, eu já sabia o que significava a cabeça de meu pai entre as pernas de minha mãe. Era quase um masturbador profissional. Entretanto sabia que ainda faltava algo em mim que por certo se concretizaria algum dia.

– Ah, Luciana! Que maravilha de sangue.

Era um silogismo em que faltava a inferência da conclusão. Eleonora então fazia o seu trabalho regiamente: fazia a comida, lavava a roupa e banhava meu pai todos os dias. Eu a olhava com uma fome diferente. E algo grunhia na minha barriga, descendo pela virilha. Comecei a pensar qual seria o dia da sangria de Eleonora. Tentei de várias formas olhar o volume entre as pernas dela mas não conseguia discernir. Eleonora era tão grande quanto o que havia entre as pernas. Não sabia se o volume que via era natural ou fabricado colado à calcinha. Também ela fechava a porta durante o banho, bem fechada, além de, ao que parece, tampar a fechadura com papel higiênico.

domingo, 2 de maio de 2010

O LIVRO "O VELHO -18 contos cotidianos e fantásticos" está à venda na livraria LDM na rua Direita da Piedade, em frente ao Banco do Brasil, ou pelo contato de email em c.vilarinho@yahoo.com.br, sendo assim pelo correio ou entrega a domicílio.Preço R$ 25,00.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O FAMIGERADO MURO DE BERLIM

TRECHO DE UM ROMANCE QUE ESTOU ESCREVENDO AINDA SEM NOME.

Cultivei o hábito, desde criança, não lembro bem a idade, de acordar às cinco da manhã. Quando pequeno, ao acordar nesse horário, corria para cima e para baixo no quintal para dois objetivos: esquentar e cair num chuveiro de água fria, que meu pai exigia e eu gostava de satisfazê-lo, e manter a forma para o futebol no colégio sempre nos intervalos do recreio. Hoje, já marmanjo e de posse de cãs, levanto-me para jogar o lixo fora e olhar as pessoas quase sempre com o semblante triste e indignado irem para o trabalho. Depois coloco a água para o café e assisto às notícias que são praticamente as mesmas da noite anterior. Algo sempre chama minha atenção, durante as notícias repetitivas, então as uso em minhas aulas. Outro dia, enquanto lia Fernando Pessoa, parei na célebre frase do poeta que todos repetem e acabará virando axioma. Sei lá se há alma é pequena ou se valerá a pena de fato? Pensei sobre isso e não cheguei a nenhuma conclusão. Retorno da inquietude silenciosa do pensamento e olho a TV, não havia alma que valesse a pena no congresso federal, tudo se repete, roubam, corrompem, dinheiro na cueca, na meia, na mala, até no cu, eles colocam. Um dia assisti a uma palestra na Universidade, uma bambambam cientista política disse que a corrupção é um erro de Deus no ser humano. Isso me espantou, sendo ela uma cientista o que teria a ver Deus com a iniqüidade dos homens? Talvez sim, no Latim, "iniquitas" também significa pecado. Bom, não há conserto para essa avaria. Dayse dorme suavemente, como se nunca correra para fugir. O ser humano vive de fugas, se não de regime político, como foi o caso dela, mas uns dos outros como tribos pré – históricas, canibalescas, um querendo comer o outro. No dia que derrubaram o muro de Berlim, jantava com meu pai, era o aniversário dele. Nove de novembro, aliteração importante nas nossas vidas. Foi então que vi Dayse na televisão, do outro lado do oceano comemorando o fim de uma das atrocidades que os donos do mundo promovem. Reação popular, ali sim, não havia nenhum líder político para chamar atenção sobre si e querer entrar para a história como precursor da grande revolta e fim da guerra fria. Não, as pessoas reuniram-se e aos poucos, primeiro timidamente depois com ânsia, altivez e cumplicidade dos dois lados, exigiam, de um lado “venham” do outro “abram os portões” e a cicatriz alemã, diria Reagan, esvaía-se. A nação aprisionada estava liberta.

PREMATURO



Quando soube da notícia, ficou atônita. Um filme veio à sua cabeça, lembrou-se da prima Elsa. Ela que se cuidava tanto, tão iniciada sexualmente e engravidara. Jurou de pés juntos que não era para amarrar ninguém. Terminou sozinha, Antonio não deu bola e sumiu no mundo. Tornou-se um estorvo para todos dentro de casa. Ouvia de tudo, o que queria e o que não queria. Mas ela procurou, depois que deixou de ser virgem, não pensava em outra coisa.

_Sua prima Elsa mesmo, huuum! Nunca mais vai ter um marido de verdade... Homem que se preza não se arrisca a casar com mulher com filho de outro... Eu sou homem e sei...

Era a voz do pai ecoando pela casa todos os dias. O eco ficou mais intenso depois do flagrante de madrugada daquele sábado na varanda. Tinha avisado ao Mário que o pai sempre acordava de madrugada. Parecia visagem, ficava andando pela casa, duas, três da manhã. Estava tão bom. O Mário beijava com um frenesi delirante e arrebatado. De repente aquela voz de barítono ao nosso lado, acho que todos acordaram ao longo da rua. A cegueira de paixão e êxtase que nos tomava por inteiro ficou mais escura de temor e sobressalto. Pensou em casamento, mas que diabos de casamento que nada! E o curso de Direito? Menos mal, ainda não tinha passado no vestibular. Perdera o ano passado. Teve que agüentar o olhar de desconfiança do pai. Submetera-se a mais um ano de cursinho. Mais embaraço na cabeça dela. Tinha que haver uma saída. E se o exame estivesse errado? Essas coisas acontecem. Era o terceiro que fazia, impossível haver erro. Mário certamente não pensara nisso, embaraçado do jeito que era. Quando souber vai sumir igual ao Antonio da Elsa. Ela não era igual a Elsa, tinha muito pudor, apesar da maledicência oblíqua do pai. Foi falta de desvelo, também não podia imaginar que aquilo escorreria para dentro de si. Mário nem entrou. Ficou brincando na porta e ela adorando. Sentiu o visco, mas pensou que era dela mesma. Ficava assim só de ver o Mário. E agora? Como explicaria virgem e grávida? Sentia-se embaçada no espelho depois do banho quente. Tinha lágrimas suficientes, mas para que? Não era de lágrimas que precisava. Pensou novamente na prima Elsa e ligou.

_Oi, tia! Eu queria falar com Elsa... Aaah, não? Tá bom, diz a ela pra ligar para mim quando chegar... Não, não é nada urgente... Tá, até logo.

Sentou no banco da praça. O Campo Grande era belo, sempre fora. Até nos idos em que era mal cuidado e sujo, como cutucavam suas lembranças. Passava das quatro e havia muitas pessoas, algumas crianças. Lembrou-se dela mesma com o pai cuidadoso, cheio de orgulho com a filhinha querida. Veio na memória o dia em que caiu do balanço e levou pontos no queixo. O pai brutamontes, em cima daquele vozeirão, desabou a chorar mais do que ela própria. Riu das suas memórias. Viu-se de repente empurrando um carrinho de bebê, toda cuidadosa e feliz. Viu Mário ao seu lado sorridente. Acordou com uma banda escolar que se apresentava para alguma autoridade no centro da praça Dois de Julho. Voltou a pensar. O que diria ao pai. E a mãe? Até então não havia lembrado da mãe. Que injustiça! A mãe que sempre apoiara, foi ela, a mãe, quem dera o sinal positivo para namorar Mário. É verdade que com muita recomendação.

_Namore, minha filha. Mas tome cuidado... A tentação geralmente é mais forte do que a gente...Esse rapaz, o Mário, parece ser bom, é meio atrapalhado, mas é um bom menino... Tome cuidado, minha filha...

Como fora esquecer da mãe. Ela poderia ajudá-la, conversaria primeiro com ela, evidente que pelas circunstancias seria difícil, mas mãe é mãe. Mostraria a ela o lacre. Aí sim, seria muito mais fácil de entender. Afinal, além de minúsculo, ele é lépido. Cai no canal vaginal e um abraço. Lá está ele refestelado nas trompas já organizando o parto. No caso dela, o primeiro parto.

Enquanto olhava a Baía de Todos os Santos da janela do ônibus, na avenida Contorno, ia e vinha nos pensamentos. Como seria o seu primeiro filho? Riu e passou a mão na barriga, ainda curta. Pensou num riso banguela. Ao mesmo tempo lembrou-se de Mário. Ele já estaria desconfiado e sumira, como Antonio. Jamais assumiria, ainda mais agora que passara para encarregado na fábrica. Teria que se virar sozinha. Ouviria o estrugir do pai. As lamentações da mãe. O “eu não te avisei, Maria Alice?” de Elsa. Os olhares de dona Joana e seu Caetano, como se a filha deles fosse santa. Era a maior galinha da rua, isso sim!

O coração acelerava a cada metro. Como um inesperado, avistou Elsa, Mário e o pai, no portão. Quase desmaiou. As pernas faltaram, mas a guerreira que existia nela segurou. O pai aproximou-se, sempre com o cenho franzido e disse:

_Maria Alice, minha filha, o seu noivo está aqui a horas...

_Noivo?

_Sim, o Mário é o seu noivo... Veio pedir sua mão em casamento, grande rapaz... Não imaginava que existissem moços como ele hoje em dia, você fez uma bela escolha filha... Imagine que ele já quer casar...

_Eu também quero...

Afonso Henrique nasceu na água, nem chorou muito. Prematuro de sete meses. Elsa ajudou a amamentar, a mãe não tinha muito leite. A avó paparicava. O avô chorava cada vez que Afonso Henrique mijava-lhe o colo. E Mário amava-a a cada dia...

sábado, 24 de abril de 2010

CAMELÔ


O delegado Carlos Antonio era um homem sério e infeliz. Casado com uma mulher que não amava mais, que não lhe dera filhos e que lhe atazanava a mente com problemas fúteis. Gostava da prostituta Roberta que o jornalista Marco lhe apresentou, no entanto não se atrevia a tocar-lhe nem um fio de cabelo. Sempre ia ao puteiro, quando a puta o via, largava com quem estivesse para lhe dar atenção e conversar. Só conversar. O delegado tentava persuadir-lhe a mente impura a largar o sexo profissional. Ela ouvia, consentia, lamentava, condoia-se e às vezes até chorava. Mas não deixava de ser santa puta. Um dia, ele resolveu comê-la, montá-la, diriam os vaqueiros num rompante machista. Diriam todos os homens suados que vendiam frutas, camelôs torcedores do ordinário tricolor baiano, taxistas hipócritas ou medíocres, tanto faz, que rodam pela São Salvador, mecânicos de máquinas de lavar que se cuspiam ao léu, sem educação doméstica. Expressão ignóbil para esses tipos. Ou estudantes angustiados com a nota final e que, sem escrúpulo, aliás, ninguém tem esse remorso fictício e, claro, isso não existe nas cabeças discentes, angariavam reais das coleguinhas que se diziam virgens mas não eram, para sua foda tranquila. Roberta lhes dava um sorriso de escárnio ao abrir as pernas, gozava somente com os estudantes. Suando a bicas, tremendo e com dor de barriga insinuante, o delegado ajoelhou-se, cheirou o sexo de Roberta. Perfumado e limpo. O delegado Carlos Antonio não conseguiu penetrar. Pagou. Constrangido e atordoado com o fracasso, ao descer e chegar na rua diante dos olhares desconfiados prendeu um camelô suspeito de tráfico de drogas e pedofilia...

quinta-feira, 22 de abril de 2010

O LEITOR DE KAFKA


Ao chegar no inferno trazido por um dos demônio-capacho, Moré, cachaceiro inveterado, ouviu o diabo dizer que ele esperasse, pois o miserável da escuridão estava ocupado levando sofrimento às pessoas de todo o mundo, aproveitava uma iminente ausência de Deus que coordenava uma reunião pela paz com Deuses do Olimpo, Orixás, Incas e Maias, todos os santos católicos, Buda, Alá, Krishna, Osíris, Odin, Thor e os cambau. No entanto, o chifrudo ao saber que Moré morreu entalado por uma pedra de dominó, a bucha de sena, não se contentou e quis ouvir a história. Moré contou-lhe que mais uma vez, entre centenas de vezes, dormiu bêbado no sofá da sala com a boca babosa e escancarada. Seu sobrinho, uma criança de dois anos, enfiou-lhe goela abaixo a peça de jogo sufocando-o e levando-o a óbito. Em desdém, o diabo mirou-o de cima a baixo e disse que ia investigar. Leitor de Kafka, dizia sempre que a ideia de criar Gregor Samsa havia partido dele, do satanás desgraçado, que incentivava a proliferação de baratas. Mas nem mesmo os demônios-capacho que lhe serviam, acreditavam nessa mentira dos diabos, no entanto ninguém ousava contrariá-lo. Sendo assim metamorfoseou-se do inseto e subiu pelo ralo da cozinha. Passeou pelos salgadinhos que estavam sendo servidos no velório deixando o miasma repugnante e foi para a sala. Viu a criança, alheia à presença da morte sentada no colo da mãe. Foi em direção do menino corriqueiramente como uma barata para lhe causar medo, asco e choro. A criança, ao ver aquele inseto, em atitude pueril e lúdica, pulou em cima e esmagou-lhe, fazendo espirrar a gosma nojenta. Ao voltar para o inferno, o diabo só tinha um lado da cara e o chifre que sobrou estava quebrado. Os demônios-capacho riam de soslaio, Cérbero gania e não sabia onde enfiar suas três cabeças, só Moré se pronunciou.

– Viu? Eu lhe disse que aquele menino tinha arte do cão, nem você pode com ele... Eu avisei...

terça-feira, 20 de abril de 2010

LADRÕES

O professor estava desempregado, ganhava uns trocados dando aulas de técnicas redacionais para estudantes que desprezavam a leitura e escrita. Isso lhe cobria de asco e indignação aos jovens do século XXI. Andava à esmo todos os dias quando não havia aulas para dar, conheceu então o ladrão Azul que era preto como a noite. Abre parênteses, haverá quem apareça e queira indignificar o texto porque o autor diz que o ladrão era preto. Ora, ele era preto não porque os ladrões só são pretos, aliás, a maioria dos ladrões contemporâneos é mestiça, são até homens públicos lá no Distrito Federal, os pretos são doutores, professores e escritores aloprados, uma minoria é ladrão. Azul era preto porque seu pai que também foi ladrão era preto e sua mãe que vendia abará no Largo da Lapinha, próxima a uma igreja católica onde o pároco iniciava as missas com a dança de Oxum e por isso foi punido pelo alto clero da arquidiocese primaz do Brasil, não se sabe se por preconceito ou intolerância à dança dos orixás africanos ou tão somente para a manutenção da ordem e tradição católica apostólica romana, portanto era preta e ele saiu preto e tornou-se ladrão como o pai para indignar a sociedade hipócrita, medíocre e metida a besta, era o que ele sempre falava. Fecha parênteses. Os dois, Azul e o professor, que era mestiço chegado a preto, passaram a andar e beber juntos no Largo Dois de Julho. Lá pelas seis da manhã, juntava-se a eles a prostituta Verônica de Assis, conhecida no meio da negociata amorosa como Alessandra Cibeli. Era ela quem pagava a cerveja e o prato de aipim com ensopado que os três traçavam durante a aurora rosada. Em seguida Azul roubava uma ou duas bolsas de estudantes ou de dondocas que passavam dentro do carro com os vidros arriados em direção ao Comércio de Salvador. Naquela noite, além dos roubos de Azul e da ludibriação do professor no jogo de cartas, Verônica de Assis, ou AC, havia negociado seu corpo ao jovem Arquimedes Gonçalves. Ela trajava somente um cinto dourado que lhe abraçava o quadril e acentuava mais seu corpo cheio de curvas voluptuosas, durante a dança, subiu na mesa do rapaz e esfregou a vagina sem pelos, muito bem perfumada e bem cuidada, apesar da profissão, no rosto extasiado e boquiaberto de Arquimedes. Alessandra soube pelo próprio “josé manoel” que ele morava sozinho num apartamento na Rua Banco dos Ingleses, próximo ao Campo Grande, zona nobre de Salvador. AC, ou Verônica de Assis, organizou o assalto ao apartamento do então leso, tonto e simplório Arquimedes. O professor, com ares de professor, foi ao prédio disfarçado, cheio de blush pelo rosto docente e apresentou-se como tal profissional que fora designado não se sabe por quem a ensinar Arquimedes as boas maneiras de um texto dissertativo. Azul e Alessandra Cibeli apareceram em seguida com uma nota falsa de despejo para o tal apartamento, o porteiro diante da confusão ordenou que subissem e se acertassem com o inquilino que para ele era o proprietário. E por isso a desconfiança lhe tomou por inteiro, dizem que o ofício de portaria é simplesmente estudar a vida alheia. A polícia chegou, matou Azul, prendeu o professor que se urinou nas calças e ouviu os depoimentos de Arquimedes Gonçalves, da sua esposa Verônica de Assis, eternos apaixonados... E do porteiro que se indagava coçando o queixo com uma dúvida atroz:

– Não sabia que seu Arquimedes era casado...

segunda-feira, 19 de abril de 2010

CONTO DE AMOR QUASE IMPOSSÍVEL

Sérgio Ricardo era dono do próprio nariz. Ouvia opiniões, mas não as acatava, era somente um pensamento que prevalecia. O dele. Tinha o rosto oval e os olhos oblíquos e profundos de quem vivia a pensar o que e como fazer as coisas, além de uma careca quase saliente que ele tentava disfarçar com um boné de grife qualquer. Conheceu Adrianinha Palito através do poeta Tony Amor. Um gordo vagabundo que achava que a vida era um mar de álcool e a atmosfera composta de fumaça de marijuana. Denominava-se engenheiro lexical e semântico. Os dois, SR e Tony Amor, estavam no Mercado Modelo, evidentemente enchendo a cara, quando Sérgio Ricardo falou pela primeira vez com Palito através do telefone celular de Tony Amor. Ela, no outro lado em um aparelho obsoleto e miserável, lá no fim de linha de São Tomé de Paripe, subúrbio ferroviário de Salvador, vizinha da residência presidencial quando o presidente sem dedo, ou outros com muitas mãos, vem à Bahia em busca de paz e bênçãos dos orixás. Triste paradoxo presente em toda a Salvador, cidade do axé, cidade do horror, de um lado o Presidente da República Federativa do Brasil com praia serena e particular separados por um muro e guardas armados da força militar tupiniquim, além de bicos e muxoxos indignados, do outro lado, mais fedorento e ontológico, uma mixórdia de pagode, casebres, lixo e cachaça baldeada com álcool noventa graus. Sérgio Ricardo apaixonou-se por Adrianinha Palito, paixão vice versa,que tinha problemas de relacionamento. Ela relutou ao sentimento quente e perverso da paixão anunciadora, não adiantou nada. Tony Amor armou o encontro em um restaurante no bairro não menos longínquo de Plataforma. Um cacete armado que assava galeto na famigerada gordurenta “televisão de cachorro”. Só engataram namoro depois que responderam mutuamente à mesma pergunta.

– Qual seu problema de relacionamento?

Quase em uníssono as respostas.

– Nada... Um probleminha (os dois em constrangimento apaixonado)É que... Eu tenho mau hálito...

Mesmo desconfiados um com o outro nos primeiros dias, beijaram-se à vontade e de nada reclamaram. Curtiram então o pôr do sol no subúrbio ferroviário com Tony Amor, o poeta adiposo, recitando o poema nerudiano “Já és minha”.

Carlos Vilarinho 18/04/10

sexta-feira, 16 de abril de 2010

LENDA URBANA

Tudo aconteceu na Travessa Vinte e Um de abril, pedaço de asfalto que liga as duas avenidas, Joana Angélica a Sete de Setembro, centro de Salvador. Gildásio era viciado em sexo, autodenominava-se "Tiger Woods" tupiniquim. Lurdes procurava um homem. Gildásio fizera amor com a esposa antes de sair de casa. Tempos atrás tornara-se impotente, depois de ejacular precocemente durante toda a adolescência e os primeiros anos de homem adulto. Em face disso, adquiriu à socapa uma prótese portátil. Segredo que ele não revelava, nem mesmo bêbado. Tira e coloca a prótese de acordo com seu desejo. Confessou ao médico que só tirava para limpar, e sem perder tempo colocava novamente. Nesse dia, ao chegar no bar embaixo do puteiro que freqüentava diariamente, conheceu Lurdes. Aprumaram-se e foram para o quarto. Lurdes ficou nua e Gildásio também. No entanto quando a mulher encaixou esperando a pegada forte sentiu algo molengo e sem vontade.

– Puta que pariu... Pôrra, caralho mole! Esqueci a pôrra da prótese no banheiro de casa!!! Berrou Gildásio em desespero terrificante.

Assim terminou a lenda do “homem de pau duro”...

terça-feira, 13 de abril de 2010

CAPÍTULO DE "TRÊS TIROS NUMA HISTÓRIA DE AMOR"

(1)
TAMPINHA


Sempre gostei dos poetas. Somos praticamente da mesma idade, sou um pouco mais velho e dei um duro danado para o bar ficar como está agora. Até entrevista para a televisão e destaque em revista cultural apareci. Minha moqueca de miragaia e a rabada com agrião que Lurdinha, minha cozinheira, faz, ganhou fama. Tempero dos deuses como Vadinho falava. Aliás, ele vive reclamando do banheiro. Tem razão o maconheiro poeta. Tenho que dar um jeito ali. É interessante que desde que a nossa amizade começou, quando tínhamos quinze, dezesseis anos, Vadinho e Joel, que nunca se desgrudaram, eram sempre os primeiros a me incentivar. O que hoje é um restaurante de proporções médio para grande porte, começou com uma simples barraquinha de cigarros e balas. Trabalhei duro, mas sempre contei, sobretudo com a ajuda daqueles dois. Conheço-os muito. Às vezes chego a pensar que conheço Vadinho, por exemplo, mais até do que ele próprio. Inúmeras foram as demonstrações idiossincráticas relativas a Vadinho que presenciei e algumas cheguei a prever. Uma vez a Maria Aparecida, hoje mulher de Bernardino, jogava insistentemente um charme meio sem graça para cima de Vadinho. Desde que começou a fazer recitais de poesia aqui no bar a presença feminina tornou-se o dobro dos homens. A sedução de Maria Aparecida não instigava Vadinho, ele ria por fora, mas por dentro estava mareado, nauseabundo. O tempo passou, abstrato ou não, e cada um tomou seu rumo. Vadinho e Joel Cachaça tornaram-se quase irmãos. Um sabia o que o outro pensava só no olhar entre si. Luís e Mariozinho eram partes da família poética. Esses quatro formavam a verve literária que muito ajudou ao meu restaurante dar certo. Tinha, portanto um apreço e uma consideração acho que sem limites e infinita por eles.
Notei nos últimos saraus que Vadinho estava diferente. Mais comedido e pensativo, como se algo o estivesse acossando. Ao mesmo tempo ouvia histórias sobre ele e uma mulher casada que desconfiava quem era, mas não tinha certeza. Margarete rondava o restaurante praticamente todos os dias no horário que ele costumava encontrar-se com Joel e Luís ao fim de tarde. Mariozinho sempre chegava mais tarde por que fechava a barraca no Mercado e vinha correndo soltar a voz ou dar pitacos nas composições de Luís, além das poesias de Vadinho e Joel. Um dia limpava umas mesas próximas ao telefone público e vi quando Margarete entrou e discou duas vezes o número da casa de Vadinho. Muxoxou, xingou Amelinha com ira e saiu. Voltou em seguida, discou novamente e ficou em silêncio. Discou de novo e dessa vez falou com a empregada de Vadinho, Joaninha. Falou rispidamente e pude ouvir uma frase.

– Você não vai fazer o que eu mandar, não é sua negra de merda? Pois, saiba que a arma já está em minha bolsa.

Aquilo me deixou alerta e preocupado. Quase paro a viatura do sargento Dias, mas depois desisti. Não sabia de fato o que ocorria. E agora Vadinho está morto. No último sarau, ouvi umas falas do poeta. Não costumava prestar atenção, a casa ficava cheia em dias de poesia e o corre-corre meu e dos garçons era intenso. Mas nesse último sarau algo fez com que eu prestasse atenção nele e em alguns da platéia. Vadinho recitou algo diferente, falou da inveja alheia. Falou que a inveja morava numa gruta escura e que nem o sol nem favônio chegavam até lá. Referiu-se a um tal de Ovídio e depois eu mesmo fiquei sabendo que favônio era o vento próspero. Já disse que não sei porque naquele momento parei para ouvir o que ele dizia. Entretanto ao olhar a platéia, procurando se havia alguém querendo cerveja ou petiscos. Vi quatro rostos contornados e mascarados de ódio e raiva. Espólios viperinos de monstros. Margarete, mestre Galegão, que era o mesmo Bernardino, e o filho deste, Lage. Havia outro que eu não sabia quem era, contudo já vira aquele rosto pelas redondezas. A inveja e a política eram temas favoritos de Vadinho. Quase em todos os recitais ele citava Shakespeare, falava de Otelo e Iago. Antonio e Shylock. Ouvindo sempre o que os poetas conversavam acabei ficando meio letrado. Foi assim que consegui comparar Margarete à Medusa, a górgona que transforma as pessoas em pedra. Bernardino a Iago, o invejoso que acabou com Desdêmona, mulher de Otelo. E Lage à Shylock, querendo um pedaço da carne de Vadinho. Aquele outro rosto desconhecido, cheio de ira, denotava uma estupidez débil. Não lembrava de nenhum personagem assim. Em Shakespeare ou outro autor qualquer que os poetas sempre discutiam à porfia. Amelinha, Harmonia e a empregada Joaninha com o filho Joãozinho estavam numa mesa ao canto direito do palco. As três embevecidas pelas palavras da trupe poética. O menino brincava distraído com um carrinho de brinquedo, de vez em quando olhava o palco e a platéia extasiada no momento das palmas. Ele, o menino Joãozinho, olhou para o fundo e algo lhe chamou a atenção. Como se tivesse assustado subitamente recolheu-se rapidamente ao colo da mãe. Aquilo me deixou apreensivo e em suspense. Não sei dizer porque, nem o que, mas havia algo no ar. Por último quando me voltei para o palco, percebi Vadinho meio travado. Joel olhava-o com um semblante preocupado e Luís errou algumas notas que nunca errara. Então Mariozinho veio até a mim e disse:

–Tampa, arrume a mesa da gente lá dentro da cozinha.

Concordei de imediato e saí para providenciar. Vi até o momento que Mariozinho chamou Amelinha e Antero ao canto e falar-lhes algo, depois entrei e fui arrumar a mesa dos poetas. Vadinho disse que estava tonto e que vira um velho desesperado acenando para ele. Saímos eu, Mariozinho, Luís e Antero, irmão de Amelinha, procuramos o tal velho e não vimos ninguém. Joel ficou em suspense olhando na direção de Bernardino e Lage. Depois Vadinho e os amigos serenaram e começaram a beber cerveja. Amelinha e Joaninha juntaram-se a eles. Não vi mais Harmonia, Antero disse que ela fora embora mais o marido. Engraçado, ele disse isso e em seguida vi Lage e o pai arrumando uma bolsa grande ou uma mochila. Não consegui saber do que se tratava, só vi a bolsa e um volume estranho que Bernardino passou para o filho e que este depois o devolveu com um semblante carregado não sei se de medo ou de ânsia. Comentei furtivamente essa cena com Antero, foi meu erro. Deveria comentar com outra pessoa, com Amelinha talvez. Com Joel ou Mariozinho. Antero era muito oculto e sem atitude. Fiquei com o foco dividido entre a casa, o restaurante, e minha preocupação com os poetas, sobretudo Vadinho. Foi então que do balcão vi passarem dois vultos para o fundo do restaurante onde ficava a cozinha. Acho que demorei demais. Quando fui ver quem eram, todos ouvimos três estampidos e três, não mais dois, vultos saíram apressadamente do bequinho que dava para o fundo do restaurante. Consegui ver uma camisa azul ou preta de costas. Em seguida o grito desesperado de Amelinha. Vadinho estava caído com uma bala, pelo menos era o que se via, alojada na altura do coração. Um furor aflito tomou a todos que estavam no restaurante. Muita gente saiu sem pagar e por sorte havia um médico entre os clientes. Olhou o ferimento e mandou que levássemos imediatamente a um hospital. Vadinho foi internado de madrugada. Enquanto conversávamos no corredor do hospital, ficamos a par de algumas informações que até então não sabíamos. Levantamos suspeitos, dentre eles, estava Margarete. Soubemos que a ex - mulher de Vadinho vinha sofrendo de psicose maníaco-depressivo, um tal de transtorno bipolar. Encontraram-na logo depois da tragédia andando a esmo e sem falar. Harmonia disse que Lage a trancou em casa e saiu novamente. E o outro que nos inspirou desconfiança, não sabíamos de quem se tratava. Chegou até nós também a informação de que Bernardino e Lage foram vistos horas depois bebendo cerveja em plena madrugada. Estavam nervosos e ariscos. Disseram também que de vez em quando, Bernardino soltava umas gargalhadas demoníacas. Luís comentou que aquele rosto do desconhecido não era tão desconhecido. A imagem vinha-lhe na memória mas ele não conseguia fazer o download para reconhecer. Não achávamos que havia mais gente envolvida. O sargento Dias e o
investigador Carlos Antonio, um gordinho com riso irônico na face, começaram as perguntas e em seguida saíram em diligência...


Carlos Vilarinho

segunda-feira, 29 de março de 2010

ANIVERSÁRIO DA CIDADE DO SALVADOR

Salvador, a cidade da Bahia, faz hoje, 29/03/2010, 461 anos. Uma velha adolescente e aporrinhada. Escrevi um artigo e o jornal "A TARDE" publicou. Para os que não são da cidade, infelizmente ou felizmente, vai aí o texto na íntegra do jornal.

PARABÉNS, SALVADOR!


Sempre imaginei as caras de Cabral ao despontar e visualizar Porto Seguro, o capitão das naus e o escrivão Caminha na tensão do encontro de duas civilizações distintas, e a do primeiro governador da cidade de São Salvador Tomé de Souza, mesmo trazendo com ele degredados e outros bichos, a beleza da cidade deve tê-los deixados boquiabertos. Provavelmente um misto de Exu e Hermes fez abrir seus olhos e bocas em assombro. Resguardo contra estrangeiros e povoação forte para a cidade de Salvador, era o queria Dom João III.

Resguardo não há mais, povoação aos montes e barrancos também. Certo que os barrancos, foram cobertos de cimento e pedra segurando muitas vidas, mas na contramão do progresso, o transporte coletivo é uma mixórdia nojenta e mal aplicada. Dias atrás aumentaram a tarifa em surdina e os cidadãos desembolsam mais dez centavos, que foram acrescentados ao antigo preço, por um serviço imundo, sem qualidade e absurdamente caro.

Sem Cabral, Caminha e Tomé, a cidade de Salvador faz festas para os antigos resguardados estrangeiros, antigos desafetos, chamando-os e recebendo-os sem cerimônia em carnaval de camarotes que antigamente, os nativos, diga-se, sentavam-se às portas de casa para rirem e se divertirem com os caretas e os jatos de lança perfume da Rua Chile e Praça Castro Alves. Salvador e sessenta anos de trio elétrico em 2010. Lembro-me que vi pela primeira vez o trio de Dôdo e Osmar num sábado que não era de carnaval, mas antecedia o domingo de carnaval, subindo a ladeira da Montanha no ano de setenta e nove. Salvador tinha então só quatrocentos e trinta anos. Foi mágico. Eu saía do antigo cinema Glauber Rocha e me deparei com o pôr do sol refletindo raios ultravioletas e um caminhão de cores e música. O chão da praça balançou. Não havia camarotes, nem cobrança, o show foi para o povo do poeta. Tomé de Souza não fazia ideia da metrópole engarrafada com ar de turismo tropical que se transformou a cidade que governou. Salvador não é mais um porto seguro, nem abriga capitães de areia.

Parabéns, Salvador!

segunda-feira, 1 de março de 2010

O VELHO 18 contos cotidianos e fantásticos





A coletânea de contos “O Velho – 18 contos cotidianos e fantásticos” do escritor Carlos Vilarinho prioriza a originalidade e a imaginação fantástica. O autor baiano apresenta uma linguagem própria, sem efeitos e com muita clareza. Desnuda o ser humano que está a sua volta e a si mesmo tornando-o também protagonista de sua narrativa singular. Nos contos “Cartas de amor” e “O Degolado” fatos distintos que se entrelaçam ao final em memória longínqua dos personagens afins. “A Dama” e “O Ogro Quiromaníaco”, contos premiados em dois concursos literários com temática erótica, o primeiro em Brasília e o segundo em São Paulo e em Vitória (ES), além de “Cheiro das Entranhas” presenteiam ao leitor tênue visão de desejo e que passeia no imaginário de qualquer pessoa. Os contos “Esquecidos de Si Mesmos”, “Usura, Pederastia e Clemência Para os Néscios”, “O Aposentado” e ” O Homem – Pimenta” são dramas de natureza genuinamente humana, a inveja que permeia e assola a vontade de quem não se estabelece no cotidiano do bojo social. “O Boçal”, “Transe Ritualístico”, “O Fotógrafo”, “A Crise de Seis Mortes”, “O Homem Que Não Queria Morrer” e “Olho Frio” são textos onde o fantástico e o terror real e inimaginável se misturam em suspense e atmosfera também dramática. Por sua vez e em contraponto ao terror apresentados por esses citados, em “A Dama dos Olhos de Esmeraldas”, “Tudo É irreal” e “O Velho”, são histórias de imaginação dramáticas e acolhedoras. Finalmente fecha com um “Conto de Natal” onde a atmosfera natalina está presente no personagem Sofia.


Carlos Vilarinho

sábado, 23 de janeiro de 2010

A PELEJA DO SINDICATO CONTRA O DIABO

Zuco completou cinquenta e sete na última semana, há vinte anos tornou-se alcoólatra depois de encontrar sua mulher enfiada na cama com um jovem universitário. Naquele dia a vida acabara para Zuco que ganhava trinta salários mínimo, era coordenador no Pólo Petroquímico de Camaçari dos operadores de alguma coisa lá por dentro das empresas que o compunham. Não tinha filhos e se apaixonara por Edezuíta, sua mulher, quando a conheceu no puteiro da Gameleira, perto da Ladeira da Montanha e Praça Castro Alves, em Salvador. A devoradora de homens prometeu a Zuco amor eterno e fidelidade sutilmente com os dedos cruzados nessa hora. Zuco acreditou e construiu uma casa com tijolos de vidro dividindo a sala de jantar e a de visita, dois andares e suíte nos cinco quartos em Cosme de Farias, bairro pobre do centro da cidade. Aliás, dizem as línguas, hoje em dia Cosme de Farias é o paraíso das putas, houve uma proliferação insana e sensata, paradoxo estranho que os homens apreciaram de verdade. Há o pensamento que o próprio Cosme de Farias se vivo estivesse, conhecido como advogado dos pobres, sujeito de ilibada conduta e de caráter acima da ordem, aceitaria e daria guarida e proteção às moças que tanto servem aos homens com tamanha ternura e prazer da carne. Edezuíta recebia sempre suas amigas de antiga profissão e não economizava na fartura. Zuco fazia gosto e dava conselhos as que ainda estavam na luta diária.

Mas Zuco não suportou a traição, chorou e bebeu vinte e um dias seguidos. Começou a faltar no trabalho e voltava para casa apreensivo e receoso de novas descobertas. No entanto um vizinho próximo, chamado Gumercindo, porteiro de um prédio no nobre bairro da Graça e que gostava da amizade do Coordenador de operadores, disse-lhe cheio de dedos que Edezuíta fazia aquilo há muito tempo, inclusive ele, Gumercindo, tinha sido seduzido. Não cedeu pela consideração e admiração que tinha com o amigo. Zuco ao saber de mais essa enveredou de vez na maldita. Aos poucos tudo perecia aos seus olhos, por dentro era uma gruta oca e escura que ecoava a todo o instante como um estribilho de carnaval a palavra “côrno”. Começava a beber às sete da manhã, esqueceu do Pólo Petroquímico e quando o dinheiro acabou juntou-se a outros três traídos como ele e começaram a formar o sindicato da cachaça contra as mulheres ingratas. A revolta de Zuco, o mais novo côrno, era tanta que ele tentou ser gay. Encachaçado, arriou as calças e pediu para Gumercindo o amigo mais próximo e que era nutrido entre ambos uma certa ternura que não o considerasse dessa vez, empurrasse tudo. O vizinho, diante daquele ânus desnudo, sentiu nojo e se arrependeu de não ter empurrado tudo em Edezuíta. O desespero tomou Zuco por inteiro, perdeu a verdadeira amizade do bom vizinho Gumercindo que evidentemente depois daquela cena repugnante somado ao desprezo que tinha dos homos, o que muitos dizem ser preconceito de machão no armário, não deu mais bola, nem mole para Zuco. Dizem lá em Cosme de Farias que Gumercindo vive com Edezuíta lá em Cajazeiras. Houve, depois de uns três meses daquela cena grotesca das calças arriadas, o espetacular flagra da esposa do porteiro: os dois, Gumercindo e Edezuíta, enroscados um no outro na antiga cama do ex-amigo e agora alcoólatra, quase gay. Sabe-se lá se é verdade, o fato é que os dois sumiram de Cosme de Farias.

O sindicato ganhou força e confiança com a presença do côrno ilustre e que era o mais bem pago entre tantos. No entanto não pingava mais grandes somas para o bolso de Zuco que perdeu também a conta do banco onde era cliente há quase vinte anos. Desde pequenino quando começou a trabalhar numa livraria na Praça da Sé. Tempos que os escritores eram lidos e suas obras faladas e discutidas em cada canto da cidade da Bahia. Hoje, ao que se consta, os livros estão em guerra contra a indústria do famigerado pagode de conotação sexual fomentado pela própria mídia em descaso da transformação social. Foi o que disse um poeta que também fazia parte do sindicato da cachaça e o único que não era côrno.

Sem dinheiro e dormindo num quarto imundo em companhia de Sabará e Nariz de Venta, respectivamente diretores do sindicato, Zuco passava os dias esmolando e ao entrar em alta embriaguez clamava por Edezuíta com a voz embargada e chorando a dor de côrno mais doída que a Rua Cosme de Farias atestara. Bebia tanto que às vezes não conseguia chegar ao quartinho imundo e dormia pela rua mesmo. Um pastor de uma igreja evangélica e que se dizia ex-ladrão e ex-maconheiro, comentou na igreja que vira da sua janela às duas da manhã Zuco sendo currado por dois ladrões pretos. A conversa ganhou a rua inteira, pois beato e beata que se prezam não guardam segredo, sobretudo dos pecadores, sentença também saída da boca do poeta que não era côrno mas vivia bêbado colando palavras em versos e em frases como aquelas. Em face disso, depois dessa suposta falácia nascida no salão de uma igreja evangélica, Zuco era carregado por Nariz de Venta que era o mais forte e o que mais demorava de ficar bêbado. Aliás, essa foi a plataforma usada pelos alcoólatras para eleger Nariz de Venta presidente do sindicato da cachaça em Cosme de Farias e Zuco mentor intelectual. Passou a acordar mais cedo, o dia ainda não dava bolas para o sol e lá estavam Zuco e Nariz de Venta, geralmente eles dois, pois Sabará não se agüentava em pé, levava quarenta a cinquenta minutos para levantar do chão frio que dormia, à caça de cachaça que eram arriadas nos trabalhos de candomblé para o Exu Tranca Rua. Um dia Sabará conseguiu se levantar a tempo de acompanhar os dois na empreitada. Meio dormindo, meio acordado ao chegar à encruzilhada do Exu deu para tremer e urinou-se. Começou a gaguejar e disse que estava vendo o Exu entornar a cachaça. Em sucinta narrativa, Sabará dizia o que via:

– Virge Nossa senhora, valei-me meu pai...
– O que é homem?
– O bicho tá ali...O bicho tá ali...
– Sabará você não está em condições de nos acompanhar mais, isso é delirium... Tem que internar o homem... – Disse-lhe Zuco para o homem que de amarelado pela cachaça foi esverdeando de medo e antes de cair duro disse:
– É vem ele, ele tá vindo, é horrível, ele tá dizendo que é a própria desgraça, ele quer pegar você, Zuco, a ideia foi sua... A ideia foi sua, ele que tá dizendo... Virge Nossa Senhora, tá bem aqui...Aiaiaiaiai, é ele mesmo, você Zuco... É você, ele tá retado com você... A ideia foi sua, ele sabe de tudo...
– Que ideia?
– A ideia de roubar a cachaça dos bichos...

O coração de Sabará explodiu e ele morreu ali mesmo. Soube-se tempos depois por uma Mãe de Santo lá da Baixa do Brongo, em Brotas, que Exu Tranca Rua chegou ao inferno com Sabará puxado pela coleira e o diabo em pessoa o recebeu. Mesmo assim não satisfeito soltou fogo pelas ventas horríveis e satânicas e gritou alto para os céus “Eu quero Zuco e aquele poeta cheio de semântica que vive dizendo que você, Senhor, não existe, e não esse desgraçado com bafo de combustível e cara de oreba que vocês me mandaram...” a ira das trevas foi tão grande que os quartinhos dos exus em todos os candomblés da Bahia chegaram a temperatura de cem graus.

Aqui na terra, alheio aos encantos e magias naturais, mesmo porque era e sempre foi descrente, Zuco e o sindicato lamentavam a morte do amigo Sabará. No entanto as palavras e a cara de horror do amigo morto não saiam da cabeça de Nariz de Venta que um dia antes de ser côrno viu a mulher que o traía receber uma entidade que se dizia Padilha, e num lance de segundos reparou bem rente ao corpo da mulher traidora a imagem da tal Padilha rindo e dizendo a ele que ia se aproveitar daquele corpo. Depois desse dia Nariz de Venta foi côrno até embaixo d’água, a mulher se transformava de uma hora para outra, não podia ver um homem que arrastava para um canto, qualquer que fosse o canto. Fizeram um evento monástico em homenagem a Sabará, o poeta que não acreditava em Deus fora seminarista por promessa de mãe, a mãe morreu ele rebelou-se do rebanho e desde então vive poetando dizendo que Deus não existe. O poeta celebrou o momento eclesiástico "em águas" no meio da rua na escadinha que dá acesso ao Bonocô onde as reuniões do sindicato se realizavam.
Enquanto isso o diabo exigiu que todos os Exus cachaceiros trouxessem para o inferno o côrno Zuco que era abençoado e dono de pureza inigualável por isso casou com uma meretriz e o poeta que não acreditava nem em Deus nem no diabo, isso o enfureceu. Uns três meses depois, Zuco, Nariz de Venta e o poeta andavam a esmo numa passarela do Bonocô lá perto do Brongo. Foram avisados pela mãe de santo Licinha de Yansã para não roubarem mais a cachaça do Exu Tranca Rua que ele estava de olho nos três. Nariz de Venta foi o primeiro a recuar e disse:

– Isso é verdade, esses monstros vivem atrás de nós e Sabará tinha razão, tenho sentido alguém nos espiar lá do outro mundo.
Poeta e Zuco gargalharam e ao pedir as horas a um homem de chapéu cobrindo o rosto e todo de preto que passavam por eles na passarela, eis a surpresa:
– É a hora de levar vocês comigo...

O espectro franzino e que aparentava pouca força ou força nenhuma ergueu os dois, Zuco e poeta, com relativa facilidade ante os olhos cheios de medo, terror e crédulos de Nariz de Venta que foi o primeiro a desmaiar. A força do Exu era tanta que ante o desmaio dos líderes intelectuais do sindicato a entidade de rua levou os dois inconscientes a presença do diabo. O rei das trevas esbravejou, queria os dois mortos para então engolir a alma, eis que num arroubo de monastério o poeta recitou o corvo e disse-lhe:

–Perdi em outrora tantos amigos tão leais, perderei também este em regressando a aurora... Nunca mais...”

O diabo inculto, estúpido e ignorante, não conhecia aqueles versos de tão fabuloso escritor, Zuco por sua vez olhando nos olhos do cão infeliz disse-lhe:

– Não tenho medo de mais nada, nem de você horrenda criatura...

E assim o diabo incrédulo com a petulância de um poeta e um côrno desgarrado, pôs-se a chorar...

Carlos Vilarinho 2010

domingo, 17 de janeiro de 2010

DOG DEAD

Quando chegou do Rio de Janeiro, logo após o carnaval, onde dançou e suou suas carnes duras, Marlene desconfiava que tudo na família havia mudado. Há dois anos, juntou-se a Dog Dead e seguiu para conhecer o Pão de Açucar, o Cristo Redentor de braços abertos e hospitaleiros e também a Favela Dona Marta onde morou por uns tempos, mas não muito. Era esguia com uma polpa da bunda saliente e desejosa. Curioso é o trânsito de toda a história até chegar ao cheiro agradável que Marlene exala por onde passa. Aqui na Bahia, ela catava lixo em Canabrava. Aos dezessete anos passeava imunda procurando baldes de lixo em Pituaçu. Achou um distante dos restaurantes que eram oferecidos naquela área. Era mais limpo, de impressionar lixeiro acostumado com cheiro azedo. Marlene viu sacos com restos de macarrão e legumes cozidos num zoom espetacular de faminto miserável. Babou. Sentiu um peso vindo do alto nos ombros. Mordeu o peso, uma peça de carne com uma pedra enfiada no meio. Uma Padparadscha Sapphire que o próprio Dog Dead apelidara de “papada safira”. Marlene só soube disso muito tempo depois que um homem de bigode ralo, vestido a caráter de branco, mas muito sujo, deslizou pelo lixo e com dificuldade de frear, esbarrou-se e beijou Marlene de roldão. Todos os badameiros da família levantaram suas foices, ou algo parecido e afiado tanto quanto, e urraram um urro Paleolítico. A moça beijou uma boca pela primeira vez, em seguida, depois de oito segundos de beijo, Marlene e Dog Dead riram juntos. Aquele momento, o dono do vento Uel conspirou e Dog Dead caiu de amores pelos dentes marrons de Marlene, pela boca e pela pedra vermelha que vinha perseguindo há tempos e, depois de uma surra que levou de viciados em itinerário errante, coincidentemente, ou sincronicamente, beijou Marlene que tinha uma Safira na boca. Os outros da família de badameiros conformaram-se logo. A “papada” que procurava parou num filé mignon no alto Pituaçu. Sabemos como a pedra Safira parou ali. A empregada da casa em Pituaçu chamada Vivian, que só tinha a quarta série e tentou, em outros tempos, comprar o diploma de nível médio e quase foi presa junto com o professor de Matemática, o estrambelhado José Silva, que também era Coordenador Pedagógico da escola, quase comia carne mole e nobilíssima depois que só a metade do golpe que tentara surtiu efeito. Vivian pensou em dar um bom jantar para seu homem, o lixeiro Radamés que varria as ruas da Pituba subindo pelo Itaigara. Radamés ajudou uma senhora rica lá do Itaigara a subir as escadas do seu prédio depois de uma forte crise de labirintite na porta de um importante shopping de Salvador. O prédio era muito pomposo, estavam em casa: a nora e uma neta de dezenove anos que olhavam distraidamente o mar da Bahia e nem viram a velha rica chegar carregada por Radamés. Lá no Shopping ninguém se manifestou. A velha rica deu a Radamés um pernil de porco e pagava o seu café da manhã na luxuosa padaria e lanchonete da Pituba depois desse ocorrido. O lixeiro sem nenhum constrangimento, pois tudo era lucro para ele, passou a tomar seu café da manhã religiosamente todos os dias com a velha rica que ele carregou seis andares nas costas e salvou-lhe a vida na luxuosa padaria da Pituba desagradando a quem usava perfumes doces. Ou não. Até então, Radamés não sabia o significado de café da manhã. Também para alívio dos engomados que frequentavam a luxuosa padaria, não durou muito o reles constrangimento about um gari tomar seu breakfast. A velha rica morreu quarenta dias depois.
Vivian jogou o filé mignon pela janela para cair num lixão perto para buscar em seguida e atestou para o casal Pitty e Luan que outra carne esverdeada, tirada lá do fundo da geladeira mal lavada, que aquela era a carne nobre estragada.

Infelizmente Radamés jamais comeria filé mignon.

Dog Dead era o receptor da Safira roubada, sabemos disso. O esperto dormiu no Aeroporto Deputado Luis Eduardo Magalhães que antes se chamava Aeroporto Dois de Julho e ninguém sabe, nem entende direito, o motivo da mudança de nome, mesmo sendo o ilustre deputado tão ilustre tanto quanto a independência da triste Bahia. Dog Dead assistia filmes de Billy Wilder e achava-se personagem de Raymond Chandler. Mas Raymond não o perdoaria, a Safira passou diante de seus sonhos num banco de aeroporto. O dentista e ator de teatro Luan driblou todos os pensamentos, parecido com a loura fatal de “Double Indemnitty” que Dog Dead assistia sem parar, e saiu do aeroporto com a “papada safira” tranquilamente, em seguida passou no açougue para comprar o filé mignon.

Em casa, ao chegar, Luan administrou uma discussão da mulher, a patricinha Pitty, com a empregada Vivian. Luan Já havia colocado a Safira no filé mignon que trouxera com ajuda do açougueiro Tatai. Luan prometeu dois por cento sobre o preço da “papada safira”, rosada como o filé mignon, a Tatai.Infelizmente Tatai jamais receberia tal porcentagem. Em seguida daria o zignal na patricinha Pitty, se não fosse o plano original e instantâneo que Vivian teve ao ouvir:

– Guardei um filé mignon no freezer, não é para fazer por esses dias, deixe que eu preparo...

Depois de jogar a carne nobre pela janela, Vivian incrementou a discussão com a patricinha Pitty. Luan não aguentou a zoadeira e demitiu Vivian quinze minutos depois de a empregada ter jogado a carne pela janela. Dog Dead estava na pista certa, esperto como Raymond, escorou-se no poste perto da janela e acendeu um cigarro em estilo noir. Marlene estava faminta, a peça de carne tombou em seu ombro, como foi narrado lá em cima. Marlene usava uma boina imunda e amarronzada. O branco original da boina já perecera nos caminhos da imundície. Dog Dead estava embaixo fumando na penumbra do poste nojento quando o filé mignon voador surgiu risonho e longe do forno de fogão iminente do Alto Pituaçu. Marlene cheirou a peça e babou, como também disse lá em cima. Talvez em quatro ou cinco segundos, Dog Dead aterrissou nos lábios da cabocla Marlene filha da mãe de santo Edenira de Oxum.

Edenira antes de ingressar no axé baba, morava na rua, então pariu Marlene de um ladrão descuidista da Avenida Sete de Setembro. O ladrão, pai de Marlene, chamava-se Azul, morrera confundido com outro assaltante. O ladrão que era para morrer chamava-se Budião e fazia ponto na rua do Sodré ao portão da antiga casa do poeta Castro Alves. Azul foi fuzilado às seis da tarde de uma terça-feira de carnaval na Praça do poeta. Nenhum folião vai mais à Praça, então ninguém viu, mesmo sendo carnaval. Todos os holofotes estavam no circuito vendido do Farol da Barra a Ondina. Mas Marlene não sabia nada disso e não se importou. Beijou Dog Dead. Gostou. Dog Dead não fedia tanto quanto Marlene, mas ao olhar os olhos tentadores de Marlene, beijou novamente. E Marlene aceitou dessa vez com seu sorriso amarronzado. O vento soprava em fúria e estalava em ideias a cabeça de Dog Dead. Marlene por sua vez, pensou em sua família composta pelos badameiros João, Paulo Bosta, Cicinho, Edinha e Juliana Amor. Esses dividiam a comida que achavam no lixo de Canabrava, no lixo de Itapuã, lixo de Cajazeiras, lixo de Pituaçu. Marlene ouviu a conversa de Dog Dead num jantar de carne assada na brasa embaixo do viaduto Raul Seixas. Não havia outros mendigos ou badameiros só eles dois. Marlene comeu e quase não acreditou que aquela carne existisse “É macia, né?” Dog Dead prometeu uma casa para João, Paulo Bosta, Cicinho, Edinha e Juliana Amor. Essa última se engraçou com Dog Dead, ele comeu, mas nada sério.

Ao encontrar a “papada Safira”, Dog Dead guardou com carinho e esperteza dessa vez. No dia seguinte ao jantar e a noite de amor com Marlene, o Cachorro Morto, Marlene descobrira o que significava Dog Dead, ligou para o facínora que explorava ladrões baratos como D.D, ou seja ele mesmo, e ofereceu a Safira em troca de sigilo total e evidentemente muito dinheiro. Foi a última coisa inteligente que D.D fez em sua vida, até morrer asfixiado por duas mãos gigantes que estavam no rastro de um Cachorro, agora morto de fato.

Marlene consertou os dentes no Rio de Janeiro, sambou, rebolou, foi porta bandeira de uma escola de samba, campeã do carnaval sem trio elétrico e meio sem graça do sul maravilha. Não pegou o que tinha direito com D.D porque não sabia, casou com um italiano e voltou para a Bahia.

Foi recebida por Juliana Amor e Cicinho. Havia dois meninos pequenos no colo de Ju Amor: um filho de Dog Dead e outro filho de Cicinho. Paulo Bosta e João morreram de cirrose. Edinha foi presa depois que montou a boca de crack com o dinheiro que Marlene mandava do Rio de Janeiro...


Carlos Vilarinho 17/01/2010

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

LAVAGEM DO BONFIM

Afonso descia a ladeira da Preguiça ressaquiado da noitada anterior regada a pó e whysk red label. Alquebrado e seco por dentro, o jornalista precisava hidratar-se para agüentar a caminhada da festa e buscar algo de relativa essência e substancial para o jornal. Ele mesmo repetia sempre que as festas da Bahia eram balaios de gatos em tetos de zinco quente.

– Com a sua licença, senhor Tennessee...

Aquele sol na moleira fazia Afonso delirar.

–De onde vem os monstros, meu Deus?

Um roda de pagode com sete ou oito homens cantando e rebolando, outros mais na frente cantavam o hino ao senhor do Bonfim num misto de fé e profanação. O sino da igreja da Nossa Senhora da Conceição badalava, os fies saíam para a procissão. As baianas a postos, os sacerdotes também, representantes de outras religiões definiam eclesiasticamente a aproximação de todos numa única fé. Afonso bebeu duas garrafinhas de água enquanto olhava um grupo de baianas travestidas. Esbarrou-se numa mulher com uma flor vermelha na cabeça. Ainda em fissura da noite anterior, Afonso concentrou-se, jogou água em volta do corpo, esfregou os olhos e assuou sangue pelo nariz. Viu os políticos que aproveitam a festa para ficar perto do povo, encorajando-os a votar, engodo infeliz e usurpador. Aprumou-se e continuou andando para o Mercado Modelo, onde uma multidão sorvia-se de cerveja, suor e beijos molhados. Teve ânsia de vômito quando uma negrinha serelepe com um curtíssimo short entrando pelas beiradas glúteas ofereceu acarajé em flerte natural da Bahia em festa religiosa. Preferia um tiro de cocaína ardente. Pensou em calafetar cada rua e beco do Comércio da Cidade Baixa para conseguir escrever algo sobre a festa. Uma crônica, um conto, até um poema, que Afonso dizia ser de difícil engenhosidade. Mas começar por onde naquele mundo de quinhentas mil pessoas embaixo do sol escaldante da Cidade da Bahia? Haveria no mínimo um milhão de histórias a ser contadas e outras milhões que aconteceriam para contar em outra oportunidade. A mulher com a flor vermelha na cabeça apareceu em sua frente novamente, não se esbarraram, mas notaram-se um ao outro. O jornalista não queria mulher naqueles instantes, ainda estava travado de pó e o tesão escondia-se por dentro das calças que até para mijar era difícil de achá-lo, todo encolhido e inibido consequencia de tanto aspirar. Resolveu beber cerveja e olhar as pessoas. Viu quando alguns timbaleiros passaram correndo e arrastando a multidão, em sua maioria jovens saudáveis e brancos. Olhou a roda de capoeira do Mercado Modelo e lembrou da história contada por um velho barraqueiro do mercado, já morto:

– Foi pernada pra tudo quanto é lugar, meu filho... Esses aí? Capoeirista nada, os meninos da Baixa do Petróleo vieram aqui e quebraram eles na capoeira, todos eles aí, ó... Correram para a Ladeira da Montanha e quem os defendeu foram as putas...

Ao chegar à Praça Marechal Deodoro sentiu vertigens e um quase desmaio o levou. Se agarrou a um poste e procurou o Beco onde fica o Palácio dos Gatos. Bebeu água novamente e observou as pessoas que bebiam cervejas,whisky e cachaça á vontade com o gosto de festa de largo. Encontrou Maroca, pensou ser a salvação para dar um tiro de pó e conversar algo que despertasse o start do texto que precisava.

– Você é maluco? Vem pra debaixo de um sol desse trabalhar e ainda por cima travado? Pára com isso, cara... Tô fora, fui...

Viu novamente a mulher com a flor vermelha na cabeça, desde que se esbarraram a feição dos dois não mudara. Ele ressaquiado, sem vontade de nada, inerte, sem raciocínio e ela, por algum motivo, séria e agora, ele com mais calma, notou um desafio em seu semblante de mulher bonita e contrariada.

– O que será que aquela criatura procura?

As baianas travestidas saíram do Palácio dos Gatos, todos os homens divertindo-se e quiçá querendo de fato tornar-se mulher. Novamente outra roda de capoeira, dessa vez de turistas estrangeiros.

– Que loucura, o mundo inteiro quer se portar como escravo capoeira.

Faltava algo naqueles capoeiristas que Afonso de imediato percebeu: a falta de cor, o suor, a ginga e a linguagem não eram originais. Esperto percebeu que o pensamento dava sinal de via de regra, de uniformidade. Aproveitou o ensejo e começou a trabalhar. Escreveu na mente a capoeira. Mas queria mais, queria algo que mexesse com o povo na essência, que houvesse transformação. A capoeira transformara os gringos, veja só! Deu um muxoxo indignado e seguiu para Água de Meninos, Feira de São Joaquim. Chupou laranja e melancia, bebeu água de coco. Reidratou e esqueceu o pó. Pagode e samba em todo canto da Cidade Baixa, ficou em baixo do jato de água dos bombeiros da Calçada e foi à Praia do Cantagalo.

– Lá com certeza acharei algo para escrever... Se não o pessoal da edição vai me matar, posso até perder essa boquinha no jornal... Tenho que escrever alguma coisa da Lavagem do Bonfim.

Os mesmos, digam-se, as mesmas baianas travestidas novamente em seu caminho. Entrou num boteco para esconder-se do sol. Cheiro de fritura, cigarro, arroto, homem suado e cerveja. Novamente a mulher com a flor vermelha na cabeça. Olharam-se. Afonso ia ensaiar um cumprimento, mas desistiu. Lembrou da negrinha serelepe do acarajé que ele deixara para trás. Queria uma mulher agora. Mas foi um desejo efêmero, perguntou-se inexoravelmente como poderia divertir-se e trabalhar com as vítimas do Haiti precisando dele. Precisando de todos que ali estavam.

– É a natureza dando a resposta aos bostas.

Decidiu ir andando pela Praia do Cantagalo, saiu do circuito central, ficaria longe da multidão, dos gringos colonizadores e de riso fácil, como entende muito bem o que quer. Comer as negrinhas. Tinha um grupo de maconheiros na praia, havia um conhecido dos tempos de baba da faculdade.

– Afonso! Vai dar dois?
– Oi... Quero não...

Chegou ao Largo de Roma, nada tinha acontecido, ao mesmo tempo tudo rolava ao seu redor, mas o jornalista não tinha ideia do texto, não sabia o que escrever. Todos os temas do mundo ali em sua frente: pobreza, riqueza, nojeira, preconceito, beleza, coisas que dão barato, pederastia, pedofilia, políticos ladrões, políticos que se dizem honestos, sabe-se lá... Ladrões que tinham genes de ladrão... Afonso estava indignado com tudo aquilo e não conseguia entrar em algo para escrever.
Mas a mulher com a flor vermelha na cabeça tinha algo a revelar, só podia ter.

– Essa criatura... O que ela quer, afinal? O tempo todo com uma insatisfação parecida com a minha...

Finalmente depois de sete quilômetros, Afonso entrava na Avenida Dendezeiro, via a sagrada colina e a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim no alto. Sentia que estava sendo levado e agora, ao mesmo tempo, notou que havia algo no ar. Buscou, olhou ao redor mais uma vez entre centenas que já fizera. Seus olhos caíram numa moça bonita que passava em sua frente, a moça virou de repente e soltou um beijo em sua direção. Ele riu, mas não acompanhou, ainda sem tesão. A moça ao se afastar lamentou dando de ombros. Cena comum nas festas baianas. Olhou, continuou olhando, seu sensor de escrita estava forte e dava sinal de alerta. A mulher com a flor vermelha no cabelo.

– É ela... Ela vai me dar esse texto.

Manteve distância, o grupo das baianas travestidas também estava próximo, passou pelo Colégio da Polícia Militar. Comprou uma cerveja e saiu andando. A mulher com a flor vermelha no cabelo estava na manha, matreira, sorrateira, como uma cobra na hora do bote. Havia visto algo. Afonso procurava. Muita gente na frente, subindo, descendo, nos lados, nas casas, nas varandas, os bares entupidos, feijão, dobradinha, farinha. Gritos, sussurros, beijos, coladas. Ela viu algo. Não conseguiu chegar, muita gente. Passaram pela Baixa do Bonfim. Subiram a colina. A igreja ficava à direita, foram para esquerda. Como quem vai para a Pedra Furada. O beco da viadagem. As baianas travestidas. Dois se beijavam. O flagrante.
A mulher com a flor vermelha no cabelo.

– Vagabundo... É assim que você é homem? Pendurado nos beiços de outro macho? É assim que você não dá conta de mim, safado... Viado, descarado...

A correria foi geral, ele saiu correndo em direção a Humaitá, ela atrás junto com uma multidão embriagada e ávida para ver e saber dos problemas alheios.
Afonso mandou o texto assim que chegou em casa, levou meia hora para escrever. Depois se jogou na cama extasiado e indignado com o mundo que só pensava em festas.

– A natureza dará a resposta aos bostas...

Carlos Vilarinho 2010

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O SALÃO

Quando Wilber entrou no salão, eu estava na cadeira, um pouco sufocado pela capa que evitava que os pelos cortados caíssem na roupa e provocassem coceiras, olhando no espelho para uma coroa gostosa que estava do outro lado. Segurei com força atmosférica a imagem das coxas e da bunda deleitosa e refestelada refletida em minha frente, em viagem onírica, percebi mais abaixo um sinal na panturrilha tenra. Era a forma de uma borboleta cinzenta. Pensei que fosse queimadura de carona de moto, mas não, era um sinal. Wilber então, fungando e ofegante, disse:

– Velho, você deixou um pimpão horroroso em meu cabelo, rei... e aí?
– Como? Respondeu Lucas que passava a dois e meio em mim.
– Como, um caralho, rei... Ó pra í , ó... Uso esse pimpão aqui porque um dia serei rei na dança de pagode, mas aqui do lado? Viajou, rei?

Lucas nesse instante me deixou um pimpão moicano. Parecido com o de Wilber, só que o meu era todo para o lado esquerdo da cabeça, não era centralizado. Fiquei com vergonha da coroa gostosa que me olhava em reflexo também do outro lado. Claro que aquele pimpão não fazia parte de mim, mas foi na hora que Lucas parou de passar a máquina e olhou para Wilber sem entender direito o que havia. Denotei isso pelo cheiro de maconha que exalava de Lucas, ele estava viajando no meu cabelo e deve ter viajado também no cabelo de Wilber. De qualquer forma, olhei Wilber pelo espelho em breve momento que não olhava a borboleta cinzenta. Ele não me viu como eu o vi. Sacou a arma e anunciou o assalto de repente, passou de um estado a outro, em atmo de faísca mantendo a cara de palerma pagodeiro que lhes é inerente. Olhei a coroa gostosa e vi o espanto inicial, ainda incrédulo. Ela fechou as pernas. Wilber olhava Lucas em êxtase desesperado como um coito proibido. Olhei meu reflexo no espelho e vi o último dos moicanos indignado e apreensivo, apavorado com a arma que Luzia na mão de Wilber. Léa, a dona do salão, para a minha surpresa, manteve a calma, no entanto o medo frio e escamoteado revelou-se em três ou quatro sílabas gagas. A outra, que passava uma pasta branca no cabelo da coroa gostosa e lívida de tensão no meu reflexo, parou a pastagem, deu um muchocho de já vu, cruzou as mãos e em rompante espetacular, tenso e em tentativa de poder, falou alto:

– Menino, faça-se de besta!!!!
Assustado!
– Mãe?

Eu, com os olhos pregados no espelho e sem tesão. Olhei através do reflexo e vi a coroa gostosa, lívida, mas levemente ofegante. Lucas com a máquina que rapava meu cabelo suspensa e em apreensão inquietante. A outra mulher, bem cabocla, ao fundo, em frente à poltrona de enxágüe depois do corte, chamada Cândida, eu acho, de olhos abertos, lânguidos, cheios de lágrimas. O comparsa de Wilber ao lado esquerdo dele olhando furiosamente a rua e com outra arma apontada para baixo, vestia a camisa do Esporte Clube Bahia o que denotava extremo mau gosto. Fazia um bico ordinário, pude ver bem de soslaio no espelho, e mais, numa rápida mas eficiente olhadela no horrendo tricolor, percebi que não havia dureza no olhar. Era encenação, pensei.

– Não se meta, mãe... Vou levar o dinheiro só desse aí que fez dança de rato em meu cabelo...
– Bora logo, meu rei... – Disse o comparsa preocupado.
– Você não vai levar porcaria nenhuma de ninguém... Se assunta, menino... Vá procurar um trabalho...

Léa, a dona do salão, contemporizou e ao se aproximar do jovem tropeçou nos pés da coroa com sinal de borboleta cinzenta na panturrilha e caiu por cima de Wilber. Ouvi um estampido seco de bala perdida e gritos agudos de mulheres em ataque de nervos. Me surpreendi com o tamanho dos meu olhos quando me vi novamente no espelho, era uma imagem ridícula o olhar assustado somado ao pimpão moicano lateral que servia minha cabeça. Se fosse um filme e estivesse em plano plongée certamente os cinéfilos ririam às minhas custas. Eis que vira-se para o meu lado.

–E você aí? Você de moicano esquisitão.
– Eu?
– Sim, você... Tem dinheiro?
– Eu...Eu...Eu não. – Disse com medo.
– Puta que pariu... Não tem dinheiro? E por que vem dá um trato no cabelo? O que faz da vida, moleque?
– Eu? (meio com medo, meio indignado pelo “moleque”) Eu sou escritor...
– Escritor? Pra que serve isso?
– Sei lá, nem eu sei... – Disse em arroubo misericordioso prevendo a morte.
– Escritor... Não tem dinheiro, mas tem palavras...
A rapidez de raciocínio de Wilber me impressionou.
– É... Mais ou menos isso.
– Certo... Talvez você não mereça de imediato uma bala na cabeça, terá muito o que contar sobre mim...
– Sobre você?
– Claro, serei “O Fenômeno do Pagode”
“Deus me livre e guarde” pensei.
– Wilber, faça o favor de sair daqui, menino. – Era a mãe de Wilber com as mãos na cadeira e prestes a servir de cavalo a algum orixá de rua que tentava pegá-la.
A coroa gostosa desmaiou. O safado do cabeleleiro maconheiro agarrou-lhe as ancas e deu palminhas na face de blush. Fiquei com ódio dele, dei razão a Wilber quase sem querer falar.
– É melhor consertar o cabelo do rapaz pelo menos...
– É o senhor tem razão...
Wilber com cara de choro e entre muxoxos de um lado a mãe e de outro o parceiro meliante que já guardara a arma que então soubemos era de brinquedo.
– Eu vou chamar é a polícia, isso sim... Cortar cabelo de vagabundo pagodeiro nenhum...
– Meu filho não é vagabundo, Lucas, dobre sua língua.

Tentava de alguma forma chamar a atenção de Lucas para o corte ridículo que ainda pairava em mim. Mas ninguém me olhava, a discussão tomou ares de família. Percebi a coroa recobrando os sentidos, levantei da cadeira e abracei-lhe cuidadosamente.

– Calma, foi tudo uma brincadeira do rapaz...
– E o tiro que ouvimos?
– Era de espoleta.
– Meu Deus! Mas que mundo nós estamos...
– Certamente... (blábláblá).


Carlos Vilarinho 2010

sábado, 9 de janeiro de 2010

PASSATEMPO

Um murro na boca e um chute no saco; o negro rodopiou e zonzo, tentou se aprumar. Como um bólido o punho do branco castigou-lhe a costela, ele se contorceu de dor, mesmo assim conseguiu ficar de pé e em guarda. Mirou os olhos e o queixo e num rápido jab, amassou o nariz do desgraçado branco e mais, um aú de capoeira, a meia lua de compasso, tirou-lhe sangue da orelha. Reagindo vermelho e fungando de raiva abraçou o negro e o derrubou, colocou-o em baixo e socou-lhe a cara, no terceiro soco o negro se desvencilhou e chutou-lhe o lombo. Ele urrou. Caído, com as mãos nas costas gritava e xingava: – Filho da puuuta! O negro chutou duas vezes pela frente; na terceira o branco segurou-lhe o pé e torceu. O negro se desmantelou em cima das pedras portuguesas do Pelourinho. Percebeu que ia ser chutado por trás e saiu catando ficha. Tomou rasteira do branco que voou e o agarrou como se fosse num coito anal, mordeu o cangote do negão como um vampiro sedento e maldito. Cuspiu o sebo salgado do pescoço do negro. Vacilou e um martelo enfiou seu pescoço tórax abaixo. Tomou um murro na omoplata, na saboneteira, como chamam. Os olhos do negro estavam injetados de raiva, a boca espumava; notava-se facilmente a carótida pulsando. Ficaram frente a frente, rodeando-se. A platéia: – Vamos, filhos das putas, acabem-se, cornos. O negro gingou, o branco riu em desdém diabólico, cuspiu no negro. A saliva pregou-se no peito esquerdo e descia escorrendo. Em ataque felino, com as garras pregadas no pescoço do negro, puxou-o para baixo e numa joelhada sensacional no umbigo, segurou-o pelo pescoço. Agarrou e apertou. O negro ia desfalecer, mas em golpe vagabundo segurou os colhões do branco; com o indicador e o médio furou os olhos do desgraçado racista. Só o indicador achou o olho, o olho direito. Um telefone nas orelhas e ao rodar um chute no cu, bem dentro do cu do branco, o fez cair. Os dois respiravam com dificuldade. O negro observava a dor do branco com as mãos no joelho em nítido cansaço. Um pingo de sangue pisado, preto e gosmento descia-lhe ao canto da boca. O branco, também forte como um estúpido animal, perdera um pedaço da orelha. O negro, maior do que Zumbi, cuspia sangue de um dente que já fora. O branco tinha sangue na boca do seu ataque vampiresco, além de cuspir bifes do pescoço do negrão.
– Não tem polícia aqui, não?
– Pôrra de polícia...
– Você é viado, é desgraça?
– Ele dá cu...
– Quero comer ela... Aquela gostosa...
– Tá perdendo tempo, ela dá pra todo mundo, o mundo todo...
– Ê desgraceira...
– Bora, pôrra, fode logo esse filho da puta...

Ecos da multidão.

De repente, para não atenuar ou morrer a atmosfera fatal o branco, em sorrelfa matreira, atacou o negro, que golfava sangue, observado mais de perto por seis ou sete pessoas entre dezenas que participavam da roda. Um murro no lombo, de mão fechada de cima para baixo. O dedo mínimo estalou. O negro caiu em capoeira, girando, rodando e na curvatura, a pernada direita, vinda de cima, fechou o olho direito do branco. Ele rosnou, gritou e ardeu. Era um ciclope agora.

– Puta que pariu... Se fudeu.
– Vá, viado.
– Viu, que eu disse?

Em urro Neanderthal e guiado por uma visão, o branco de estúpida monstruosidade saltou na frente do negro. Incrédulo, recebeu um golpe forte no meio da cabeça, um martelo de braço. Ficou zonzo e desorientado, fatalmente perderia. Uma negra de pés descalços veio correndo pelo paralelepípedo com um balde de água e derramou, assustada, na cabeça do negro. O choque da água com o corpo suado e ferido inflamou, e numa virada de urso, acertou o osso zigomático do lado esquerdo. Um animal miserável era aquele negro. Fungava sangue em silêncio. Olhava enfurecido o oponente. O sangue esguichava pulsante.

– Ninguém vê Deus, aqui?
– Vá se fudê, rei...
– Em nome de Jesus, meu pai!!!
– Sai daqui desgraça, vá pregar sua religião de ladrão nos infernos...

Um de frente para o outro, olhavam-se, miravam-se, estudavam alguma estratégia de luta para impor sobre o adversário. O branco xingou o negro, que sempre calado, mostrou o dedo médio em riste. A platéia em êxtase incentivava xingando-os também. Do lado de fora da roda uma dupla de ladrões fazia descuido; o vendedor de cafezinho viu tudo, mas ao perceber o olhar satânico que um dos descuidistas dispensava para ele, fez vistas grossas e se afastou com suas garrafas térmicas de café. Do outro lado, na esquina da rua Saldanha da Gama, uma prostituta assediava um gringo apalermado com a arquitetura renascentista do Pelourinho. Ela ofereceu um boquete por cinco. Ele riu e foi embora, talvez não tenha entendido. Como não? A linguagem da putaria é universal. A luta recomeçou no meio da roda, no centro do Terreiro de Jesus. O negro deu um soco na testa do branco, que rodopiou, mas ao rodar o corpo, levantou uma das pernas que acertou o outro na região dos rins. O negro sentiu muito esse golpe inesperado, mas era mais duro do que qualquer escravo capoeira e repetiu o soco de cima para baixo no cocuruto do branco que mostrou a língua e caiu. A platéia urrava, gritava, ria e apostava.
– Levanta, pôrra...
– Olhe, desgraça, não posso perder meu dinheiro não, viu?
– Mete a pôrra nele, picolé de betume.
O negro em atitude de misericórdia pulou, girou no ar e desceu com mais um martelo no mesmo lugar em que dera o murro. O branco estava vencido, não havia mais força para levantar e partir para cima do negro. A platéia ria, aplaudia e cobrava uns aos outros. Uma senhora que ia passando para a missa, viu a cena derradeira e perguntou a um dos que assistiam a luta.
– Mas pra que isso?
– Passatempo, minha senhora, passatempo...
Afinal os dois ladrões roubaram o gringo...


Carlos Vilarinho-outubro 2009