domingo, 17 de janeiro de 2010

DOG DEAD

Quando chegou do Rio de Janeiro, logo após o carnaval, onde dançou e suou suas carnes duras, Marlene desconfiava que tudo na família havia mudado. Há dois anos, juntou-se a Dog Dead e seguiu para conhecer o Pão de Açucar, o Cristo Redentor de braços abertos e hospitaleiros e também a Favela Dona Marta onde morou por uns tempos, mas não muito. Era esguia com uma polpa da bunda saliente e desejosa. Curioso é o trânsito de toda a história até chegar ao cheiro agradável que Marlene exala por onde passa. Aqui na Bahia, ela catava lixo em Canabrava. Aos dezessete anos passeava imunda procurando baldes de lixo em Pituaçu. Achou um distante dos restaurantes que eram oferecidos naquela área. Era mais limpo, de impressionar lixeiro acostumado com cheiro azedo. Marlene viu sacos com restos de macarrão e legumes cozidos num zoom espetacular de faminto miserável. Babou. Sentiu um peso vindo do alto nos ombros. Mordeu o peso, uma peça de carne com uma pedra enfiada no meio. Uma Padparadscha Sapphire que o próprio Dog Dead apelidara de “papada safira”. Marlene só soube disso muito tempo depois que um homem de bigode ralo, vestido a caráter de branco, mas muito sujo, deslizou pelo lixo e com dificuldade de frear, esbarrou-se e beijou Marlene de roldão. Todos os badameiros da família levantaram suas foices, ou algo parecido e afiado tanto quanto, e urraram um urro Paleolítico. A moça beijou uma boca pela primeira vez, em seguida, depois de oito segundos de beijo, Marlene e Dog Dead riram juntos. Aquele momento, o dono do vento Uel conspirou e Dog Dead caiu de amores pelos dentes marrons de Marlene, pela boca e pela pedra vermelha que vinha perseguindo há tempos e, depois de uma surra que levou de viciados em itinerário errante, coincidentemente, ou sincronicamente, beijou Marlene que tinha uma Safira na boca. Os outros da família de badameiros conformaram-se logo. A “papada” que procurava parou num filé mignon no alto Pituaçu. Sabemos como a pedra Safira parou ali. A empregada da casa em Pituaçu chamada Vivian, que só tinha a quarta série e tentou, em outros tempos, comprar o diploma de nível médio e quase foi presa junto com o professor de Matemática, o estrambelhado José Silva, que também era Coordenador Pedagógico da escola, quase comia carne mole e nobilíssima depois que só a metade do golpe que tentara surtiu efeito. Vivian pensou em dar um bom jantar para seu homem, o lixeiro Radamés que varria as ruas da Pituba subindo pelo Itaigara. Radamés ajudou uma senhora rica lá do Itaigara a subir as escadas do seu prédio depois de uma forte crise de labirintite na porta de um importante shopping de Salvador. O prédio era muito pomposo, estavam em casa: a nora e uma neta de dezenove anos que olhavam distraidamente o mar da Bahia e nem viram a velha rica chegar carregada por Radamés. Lá no Shopping ninguém se manifestou. A velha rica deu a Radamés um pernil de porco e pagava o seu café da manhã na luxuosa padaria e lanchonete da Pituba depois desse ocorrido. O lixeiro sem nenhum constrangimento, pois tudo era lucro para ele, passou a tomar seu café da manhã religiosamente todos os dias com a velha rica que ele carregou seis andares nas costas e salvou-lhe a vida na luxuosa padaria da Pituba desagradando a quem usava perfumes doces. Ou não. Até então, Radamés não sabia o significado de café da manhã. Também para alívio dos engomados que frequentavam a luxuosa padaria, não durou muito o reles constrangimento about um gari tomar seu breakfast. A velha rica morreu quarenta dias depois.
Vivian jogou o filé mignon pela janela para cair num lixão perto para buscar em seguida e atestou para o casal Pitty e Luan que outra carne esverdeada, tirada lá do fundo da geladeira mal lavada, que aquela era a carne nobre estragada.

Infelizmente Radamés jamais comeria filé mignon.

Dog Dead era o receptor da Safira roubada, sabemos disso. O esperto dormiu no Aeroporto Deputado Luis Eduardo Magalhães que antes se chamava Aeroporto Dois de Julho e ninguém sabe, nem entende direito, o motivo da mudança de nome, mesmo sendo o ilustre deputado tão ilustre tanto quanto a independência da triste Bahia. Dog Dead assistia filmes de Billy Wilder e achava-se personagem de Raymond Chandler. Mas Raymond não o perdoaria, a Safira passou diante de seus sonhos num banco de aeroporto. O dentista e ator de teatro Luan driblou todos os pensamentos, parecido com a loura fatal de “Double Indemnitty” que Dog Dead assistia sem parar, e saiu do aeroporto com a “papada safira” tranquilamente, em seguida passou no açougue para comprar o filé mignon.

Em casa, ao chegar, Luan administrou uma discussão da mulher, a patricinha Pitty, com a empregada Vivian. Luan Já havia colocado a Safira no filé mignon que trouxera com ajuda do açougueiro Tatai. Luan prometeu dois por cento sobre o preço da “papada safira”, rosada como o filé mignon, a Tatai.Infelizmente Tatai jamais receberia tal porcentagem. Em seguida daria o zignal na patricinha Pitty, se não fosse o plano original e instantâneo que Vivian teve ao ouvir:

– Guardei um filé mignon no freezer, não é para fazer por esses dias, deixe que eu preparo...

Depois de jogar a carne nobre pela janela, Vivian incrementou a discussão com a patricinha Pitty. Luan não aguentou a zoadeira e demitiu Vivian quinze minutos depois de a empregada ter jogado a carne pela janela. Dog Dead estava na pista certa, esperto como Raymond, escorou-se no poste perto da janela e acendeu um cigarro em estilo noir. Marlene estava faminta, a peça de carne tombou em seu ombro, como foi narrado lá em cima. Marlene usava uma boina imunda e amarronzada. O branco original da boina já perecera nos caminhos da imundície. Dog Dead estava embaixo fumando na penumbra do poste nojento quando o filé mignon voador surgiu risonho e longe do forno de fogão iminente do Alto Pituaçu. Marlene cheirou a peça e babou, como também disse lá em cima. Talvez em quatro ou cinco segundos, Dog Dead aterrissou nos lábios da cabocla Marlene filha da mãe de santo Edenira de Oxum.

Edenira antes de ingressar no axé baba, morava na rua, então pariu Marlene de um ladrão descuidista da Avenida Sete de Setembro. O ladrão, pai de Marlene, chamava-se Azul, morrera confundido com outro assaltante. O ladrão que era para morrer chamava-se Budião e fazia ponto na rua do Sodré ao portão da antiga casa do poeta Castro Alves. Azul foi fuzilado às seis da tarde de uma terça-feira de carnaval na Praça do poeta. Nenhum folião vai mais à Praça, então ninguém viu, mesmo sendo carnaval. Todos os holofotes estavam no circuito vendido do Farol da Barra a Ondina. Mas Marlene não sabia nada disso e não se importou. Beijou Dog Dead. Gostou. Dog Dead não fedia tanto quanto Marlene, mas ao olhar os olhos tentadores de Marlene, beijou novamente. E Marlene aceitou dessa vez com seu sorriso amarronzado. O vento soprava em fúria e estalava em ideias a cabeça de Dog Dead. Marlene por sua vez, pensou em sua família composta pelos badameiros João, Paulo Bosta, Cicinho, Edinha e Juliana Amor. Esses dividiam a comida que achavam no lixo de Canabrava, no lixo de Itapuã, lixo de Cajazeiras, lixo de Pituaçu. Marlene ouviu a conversa de Dog Dead num jantar de carne assada na brasa embaixo do viaduto Raul Seixas. Não havia outros mendigos ou badameiros só eles dois. Marlene comeu e quase não acreditou que aquela carne existisse “É macia, né?” Dog Dead prometeu uma casa para João, Paulo Bosta, Cicinho, Edinha e Juliana Amor. Essa última se engraçou com Dog Dead, ele comeu, mas nada sério.

Ao encontrar a “papada Safira”, Dog Dead guardou com carinho e esperteza dessa vez. No dia seguinte ao jantar e a noite de amor com Marlene, o Cachorro Morto, Marlene descobrira o que significava Dog Dead, ligou para o facínora que explorava ladrões baratos como D.D, ou seja ele mesmo, e ofereceu a Safira em troca de sigilo total e evidentemente muito dinheiro. Foi a última coisa inteligente que D.D fez em sua vida, até morrer asfixiado por duas mãos gigantes que estavam no rastro de um Cachorro, agora morto de fato.

Marlene consertou os dentes no Rio de Janeiro, sambou, rebolou, foi porta bandeira de uma escola de samba, campeã do carnaval sem trio elétrico e meio sem graça do sul maravilha. Não pegou o que tinha direito com D.D porque não sabia, casou com um italiano e voltou para a Bahia.

Foi recebida por Juliana Amor e Cicinho. Havia dois meninos pequenos no colo de Ju Amor: um filho de Dog Dead e outro filho de Cicinho. Paulo Bosta e João morreram de cirrose. Edinha foi presa depois que montou a boca de crack com o dinheiro que Marlene mandava do Rio de Janeiro...


Carlos Vilarinho 17/01/2010

5 comentários:

  1. Cara, que loucura... Você é doido mesmo, adorei o conto.

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  2. Você está cada vez melhor quando descreve o ambiente, antes do fato que ali ocorrerá. Muito bem mesmo. Posso dizer, pois andei relendo seu livro.

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  3. Muito bom, Carlos, muito bom mesmo... Acho que, sem exageros, você desponta como um dos grandes literatos da Literatura brasileira, seu estilo é inconfundível.
    Torcendo por você,
    Beijos,
    Clarinha.

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  4. Concordo, seu estilo é diferente. Parabéns, muito bom.

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  5. Grande Carlos!
    Estilo forte, texto que interessa e flue bem, tudo muito bom. É um texto para ler com calma, enchendo os olhos e a mente, Parabéns!
    Forte Abraço!
    Lobão
    www.DicasDoAlexandreLobao.Blogspot.com

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