terça-feira, 13 de abril de 2010

CAPÍTULO DE "TRÊS TIROS NUMA HISTÓRIA DE AMOR"

(1)
TAMPINHA


Sempre gostei dos poetas. Somos praticamente da mesma idade, sou um pouco mais velho e dei um duro danado para o bar ficar como está agora. Até entrevista para a televisão e destaque em revista cultural apareci. Minha moqueca de miragaia e a rabada com agrião que Lurdinha, minha cozinheira, faz, ganhou fama. Tempero dos deuses como Vadinho falava. Aliás, ele vive reclamando do banheiro. Tem razão o maconheiro poeta. Tenho que dar um jeito ali. É interessante que desde que a nossa amizade começou, quando tínhamos quinze, dezesseis anos, Vadinho e Joel, que nunca se desgrudaram, eram sempre os primeiros a me incentivar. O que hoje é um restaurante de proporções médio para grande porte, começou com uma simples barraquinha de cigarros e balas. Trabalhei duro, mas sempre contei, sobretudo com a ajuda daqueles dois. Conheço-os muito. Às vezes chego a pensar que conheço Vadinho, por exemplo, mais até do que ele próprio. Inúmeras foram as demonstrações idiossincráticas relativas a Vadinho que presenciei e algumas cheguei a prever. Uma vez a Maria Aparecida, hoje mulher de Bernardino, jogava insistentemente um charme meio sem graça para cima de Vadinho. Desde que começou a fazer recitais de poesia aqui no bar a presença feminina tornou-se o dobro dos homens. A sedução de Maria Aparecida não instigava Vadinho, ele ria por fora, mas por dentro estava mareado, nauseabundo. O tempo passou, abstrato ou não, e cada um tomou seu rumo. Vadinho e Joel Cachaça tornaram-se quase irmãos. Um sabia o que o outro pensava só no olhar entre si. Luís e Mariozinho eram partes da família poética. Esses quatro formavam a verve literária que muito ajudou ao meu restaurante dar certo. Tinha, portanto um apreço e uma consideração acho que sem limites e infinita por eles.
Notei nos últimos saraus que Vadinho estava diferente. Mais comedido e pensativo, como se algo o estivesse acossando. Ao mesmo tempo ouvia histórias sobre ele e uma mulher casada que desconfiava quem era, mas não tinha certeza. Margarete rondava o restaurante praticamente todos os dias no horário que ele costumava encontrar-se com Joel e Luís ao fim de tarde. Mariozinho sempre chegava mais tarde por que fechava a barraca no Mercado e vinha correndo soltar a voz ou dar pitacos nas composições de Luís, além das poesias de Vadinho e Joel. Um dia limpava umas mesas próximas ao telefone público e vi quando Margarete entrou e discou duas vezes o número da casa de Vadinho. Muxoxou, xingou Amelinha com ira e saiu. Voltou em seguida, discou novamente e ficou em silêncio. Discou de novo e dessa vez falou com a empregada de Vadinho, Joaninha. Falou rispidamente e pude ouvir uma frase.

– Você não vai fazer o que eu mandar, não é sua negra de merda? Pois, saiba que a arma já está em minha bolsa.

Aquilo me deixou alerta e preocupado. Quase paro a viatura do sargento Dias, mas depois desisti. Não sabia de fato o que ocorria. E agora Vadinho está morto. No último sarau, ouvi umas falas do poeta. Não costumava prestar atenção, a casa ficava cheia em dias de poesia e o corre-corre meu e dos garçons era intenso. Mas nesse último sarau algo fez com que eu prestasse atenção nele e em alguns da platéia. Vadinho recitou algo diferente, falou da inveja alheia. Falou que a inveja morava numa gruta escura e que nem o sol nem favônio chegavam até lá. Referiu-se a um tal de Ovídio e depois eu mesmo fiquei sabendo que favônio era o vento próspero. Já disse que não sei porque naquele momento parei para ouvir o que ele dizia. Entretanto ao olhar a platéia, procurando se havia alguém querendo cerveja ou petiscos. Vi quatro rostos contornados e mascarados de ódio e raiva. Espólios viperinos de monstros. Margarete, mestre Galegão, que era o mesmo Bernardino, e o filho deste, Lage. Havia outro que eu não sabia quem era, contudo já vira aquele rosto pelas redondezas. A inveja e a política eram temas favoritos de Vadinho. Quase em todos os recitais ele citava Shakespeare, falava de Otelo e Iago. Antonio e Shylock. Ouvindo sempre o que os poetas conversavam acabei ficando meio letrado. Foi assim que consegui comparar Margarete à Medusa, a górgona que transforma as pessoas em pedra. Bernardino a Iago, o invejoso que acabou com Desdêmona, mulher de Otelo. E Lage à Shylock, querendo um pedaço da carne de Vadinho. Aquele outro rosto desconhecido, cheio de ira, denotava uma estupidez débil. Não lembrava de nenhum personagem assim. Em Shakespeare ou outro autor qualquer que os poetas sempre discutiam à porfia. Amelinha, Harmonia e a empregada Joaninha com o filho Joãozinho estavam numa mesa ao canto direito do palco. As três embevecidas pelas palavras da trupe poética. O menino brincava distraído com um carrinho de brinquedo, de vez em quando olhava o palco e a platéia extasiada no momento das palmas. Ele, o menino Joãozinho, olhou para o fundo e algo lhe chamou a atenção. Como se tivesse assustado subitamente recolheu-se rapidamente ao colo da mãe. Aquilo me deixou apreensivo e em suspense. Não sei dizer porque, nem o que, mas havia algo no ar. Por último quando me voltei para o palco, percebi Vadinho meio travado. Joel olhava-o com um semblante preocupado e Luís errou algumas notas que nunca errara. Então Mariozinho veio até a mim e disse:

–Tampa, arrume a mesa da gente lá dentro da cozinha.

Concordei de imediato e saí para providenciar. Vi até o momento que Mariozinho chamou Amelinha e Antero ao canto e falar-lhes algo, depois entrei e fui arrumar a mesa dos poetas. Vadinho disse que estava tonto e que vira um velho desesperado acenando para ele. Saímos eu, Mariozinho, Luís e Antero, irmão de Amelinha, procuramos o tal velho e não vimos ninguém. Joel ficou em suspense olhando na direção de Bernardino e Lage. Depois Vadinho e os amigos serenaram e começaram a beber cerveja. Amelinha e Joaninha juntaram-se a eles. Não vi mais Harmonia, Antero disse que ela fora embora mais o marido. Engraçado, ele disse isso e em seguida vi Lage e o pai arrumando uma bolsa grande ou uma mochila. Não consegui saber do que se tratava, só vi a bolsa e um volume estranho que Bernardino passou para o filho e que este depois o devolveu com um semblante carregado não sei se de medo ou de ânsia. Comentei furtivamente essa cena com Antero, foi meu erro. Deveria comentar com outra pessoa, com Amelinha talvez. Com Joel ou Mariozinho. Antero era muito oculto e sem atitude. Fiquei com o foco dividido entre a casa, o restaurante, e minha preocupação com os poetas, sobretudo Vadinho. Foi então que do balcão vi passarem dois vultos para o fundo do restaurante onde ficava a cozinha. Acho que demorei demais. Quando fui ver quem eram, todos ouvimos três estampidos e três, não mais dois, vultos saíram apressadamente do bequinho que dava para o fundo do restaurante. Consegui ver uma camisa azul ou preta de costas. Em seguida o grito desesperado de Amelinha. Vadinho estava caído com uma bala, pelo menos era o que se via, alojada na altura do coração. Um furor aflito tomou a todos que estavam no restaurante. Muita gente saiu sem pagar e por sorte havia um médico entre os clientes. Olhou o ferimento e mandou que levássemos imediatamente a um hospital. Vadinho foi internado de madrugada. Enquanto conversávamos no corredor do hospital, ficamos a par de algumas informações que até então não sabíamos. Levantamos suspeitos, dentre eles, estava Margarete. Soubemos que a ex - mulher de Vadinho vinha sofrendo de psicose maníaco-depressivo, um tal de transtorno bipolar. Encontraram-na logo depois da tragédia andando a esmo e sem falar. Harmonia disse que Lage a trancou em casa e saiu novamente. E o outro que nos inspirou desconfiança, não sabíamos de quem se tratava. Chegou até nós também a informação de que Bernardino e Lage foram vistos horas depois bebendo cerveja em plena madrugada. Estavam nervosos e ariscos. Disseram também que de vez em quando, Bernardino soltava umas gargalhadas demoníacas. Luís comentou que aquele rosto do desconhecido não era tão desconhecido. A imagem vinha-lhe na memória mas ele não conseguia fazer o download para reconhecer. Não achávamos que havia mais gente envolvida. O sargento Dias e o
investigador Carlos Antonio, um gordinho com riso irônico na face, começaram as perguntas e em seguida saíram em diligência...


Carlos Vilarinho

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