terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O SALÃO

Quando Wilber entrou no salão, eu estava na cadeira, um pouco sufocado pela capa que evitava que os pelos cortados caíssem na roupa e provocassem coceiras, olhando no espelho para uma coroa gostosa que estava do outro lado. Segurei com força atmosférica a imagem das coxas e da bunda deleitosa e refestelada refletida em minha frente, em viagem onírica, percebi mais abaixo um sinal na panturrilha tenra. Era a forma de uma borboleta cinzenta. Pensei que fosse queimadura de carona de moto, mas não, era um sinal. Wilber então, fungando e ofegante, disse:

– Velho, você deixou um pimpão horroroso em meu cabelo, rei... e aí?
– Como? Respondeu Lucas que passava a dois e meio em mim.
– Como, um caralho, rei... Ó pra í , ó... Uso esse pimpão aqui porque um dia serei rei na dança de pagode, mas aqui do lado? Viajou, rei?

Lucas nesse instante me deixou um pimpão moicano. Parecido com o de Wilber, só que o meu era todo para o lado esquerdo da cabeça, não era centralizado. Fiquei com vergonha da coroa gostosa que me olhava em reflexo também do outro lado. Claro que aquele pimpão não fazia parte de mim, mas foi na hora que Lucas parou de passar a máquina e olhou para Wilber sem entender direito o que havia. Denotei isso pelo cheiro de maconha que exalava de Lucas, ele estava viajando no meu cabelo e deve ter viajado também no cabelo de Wilber. De qualquer forma, olhei Wilber pelo espelho em breve momento que não olhava a borboleta cinzenta. Ele não me viu como eu o vi. Sacou a arma e anunciou o assalto de repente, passou de um estado a outro, em atmo de faísca mantendo a cara de palerma pagodeiro que lhes é inerente. Olhei a coroa gostosa e vi o espanto inicial, ainda incrédulo. Ela fechou as pernas. Wilber olhava Lucas em êxtase desesperado como um coito proibido. Olhei meu reflexo no espelho e vi o último dos moicanos indignado e apreensivo, apavorado com a arma que Luzia na mão de Wilber. Léa, a dona do salão, para a minha surpresa, manteve a calma, no entanto o medo frio e escamoteado revelou-se em três ou quatro sílabas gagas. A outra, que passava uma pasta branca no cabelo da coroa gostosa e lívida de tensão no meu reflexo, parou a pastagem, deu um muchocho de já vu, cruzou as mãos e em rompante espetacular, tenso e em tentativa de poder, falou alto:

– Menino, faça-se de besta!!!!
Assustado!
– Mãe?

Eu, com os olhos pregados no espelho e sem tesão. Olhei através do reflexo e vi a coroa gostosa, lívida, mas levemente ofegante. Lucas com a máquina que rapava meu cabelo suspensa e em apreensão inquietante. A outra mulher, bem cabocla, ao fundo, em frente à poltrona de enxágüe depois do corte, chamada Cândida, eu acho, de olhos abertos, lânguidos, cheios de lágrimas. O comparsa de Wilber ao lado esquerdo dele olhando furiosamente a rua e com outra arma apontada para baixo, vestia a camisa do Esporte Clube Bahia o que denotava extremo mau gosto. Fazia um bico ordinário, pude ver bem de soslaio no espelho, e mais, numa rápida mas eficiente olhadela no horrendo tricolor, percebi que não havia dureza no olhar. Era encenação, pensei.

– Não se meta, mãe... Vou levar o dinheiro só desse aí que fez dança de rato em meu cabelo...
– Bora logo, meu rei... – Disse o comparsa preocupado.
– Você não vai levar porcaria nenhuma de ninguém... Se assunta, menino... Vá procurar um trabalho...

Léa, a dona do salão, contemporizou e ao se aproximar do jovem tropeçou nos pés da coroa com sinal de borboleta cinzenta na panturrilha e caiu por cima de Wilber. Ouvi um estampido seco de bala perdida e gritos agudos de mulheres em ataque de nervos. Me surpreendi com o tamanho dos meu olhos quando me vi novamente no espelho, era uma imagem ridícula o olhar assustado somado ao pimpão moicano lateral que servia minha cabeça. Se fosse um filme e estivesse em plano plongée certamente os cinéfilos ririam às minhas custas. Eis que vira-se para o meu lado.

–E você aí? Você de moicano esquisitão.
– Eu?
– Sim, você... Tem dinheiro?
– Eu...Eu...Eu não. – Disse com medo.
– Puta que pariu... Não tem dinheiro? E por que vem dá um trato no cabelo? O que faz da vida, moleque?
– Eu? (meio com medo, meio indignado pelo “moleque”) Eu sou escritor...
– Escritor? Pra que serve isso?
– Sei lá, nem eu sei... – Disse em arroubo misericordioso prevendo a morte.
– Escritor... Não tem dinheiro, mas tem palavras...
A rapidez de raciocínio de Wilber me impressionou.
– É... Mais ou menos isso.
– Certo... Talvez você não mereça de imediato uma bala na cabeça, terá muito o que contar sobre mim...
– Sobre você?
– Claro, serei “O Fenômeno do Pagode”
“Deus me livre e guarde” pensei.
– Wilber, faça o favor de sair daqui, menino. – Era a mãe de Wilber com as mãos na cadeira e prestes a servir de cavalo a algum orixá de rua que tentava pegá-la.
A coroa gostosa desmaiou. O safado do cabeleleiro maconheiro agarrou-lhe as ancas e deu palminhas na face de blush. Fiquei com ódio dele, dei razão a Wilber quase sem querer falar.
– É melhor consertar o cabelo do rapaz pelo menos...
– É o senhor tem razão...
Wilber com cara de choro e entre muxoxos de um lado a mãe e de outro o parceiro meliante que já guardara a arma que então soubemos era de brinquedo.
– Eu vou chamar é a polícia, isso sim... Cortar cabelo de vagabundo pagodeiro nenhum...
– Meu filho não é vagabundo, Lucas, dobre sua língua.

Tentava de alguma forma chamar a atenção de Lucas para o corte ridículo que ainda pairava em mim. Mas ninguém me olhava, a discussão tomou ares de família. Percebi a coroa recobrando os sentidos, levantei da cadeira e abracei-lhe cuidadosamente.

– Calma, foi tudo uma brincadeira do rapaz...
– E o tiro que ouvimos?
– Era de espoleta.
– Meu Deus! Mas que mundo nós estamos...
– Certamente... (blábláblá).


Carlos Vilarinho 2010

3 comentários:

  1. Texto divertido do amigo.Outros muito bons abaixo também. VIm desejar ao amigo Carlos Vilarinho, sucesso e boa sorte não só nos empreendimentos culturais, que já os faz muito bem, mas também na vida pessoal. UIm abraço

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  2. Estou chegando na sua nova casa. Primeiramente vou olhar, lerei e seguirei. Beijo. Boa morada!

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  3. É isso aí Vilarinho!
    Gostei do trabalho.
    Um abraço
    Firdauz

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