sábado, 9 de janeiro de 2010

PASSATEMPO

Um murro na boca e um chute no saco; o negro rodopiou e zonzo, tentou se aprumar. Como um bólido o punho do branco castigou-lhe a costela, ele se contorceu de dor, mesmo assim conseguiu ficar de pé e em guarda. Mirou os olhos e o queixo e num rápido jab, amassou o nariz do desgraçado branco e mais, um aú de capoeira, a meia lua de compasso, tirou-lhe sangue da orelha. Reagindo vermelho e fungando de raiva abraçou o negro e o derrubou, colocou-o em baixo e socou-lhe a cara, no terceiro soco o negro se desvencilhou e chutou-lhe o lombo. Ele urrou. Caído, com as mãos nas costas gritava e xingava: – Filho da puuuta! O negro chutou duas vezes pela frente; na terceira o branco segurou-lhe o pé e torceu. O negro se desmantelou em cima das pedras portuguesas do Pelourinho. Percebeu que ia ser chutado por trás e saiu catando ficha. Tomou rasteira do branco que voou e o agarrou como se fosse num coito anal, mordeu o cangote do negão como um vampiro sedento e maldito. Cuspiu o sebo salgado do pescoço do negro. Vacilou e um martelo enfiou seu pescoço tórax abaixo. Tomou um murro na omoplata, na saboneteira, como chamam. Os olhos do negro estavam injetados de raiva, a boca espumava; notava-se facilmente a carótida pulsando. Ficaram frente a frente, rodeando-se. A platéia: – Vamos, filhos das putas, acabem-se, cornos. O negro gingou, o branco riu em desdém diabólico, cuspiu no negro. A saliva pregou-se no peito esquerdo e descia escorrendo. Em ataque felino, com as garras pregadas no pescoço do negro, puxou-o para baixo e numa joelhada sensacional no umbigo, segurou-o pelo pescoço. Agarrou e apertou. O negro ia desfalecer, mas em golpe vagabundo segurou os colhões do branco; com o indicador e o médio furou os olhos do desgraçado racista. Só o indicador achou o olho, o olho direito. Um telefone nas orelhas e ao rodar um chute no cu, bem dentro do cu do branco, o fez cair. Os dois respiravam com dificuldade. O negro observava a dor do branco com as mãos no joelho em nítido cansaço. Um pingo de sangue pisado, preto e gosmento descia-lhe ao canto da boca. O branco, também forte como um estúpido animal, perdera um pedaço da orelha. O negro, maior do que Zumbi, cuspia sangue de um dente que já fora. O branco tinha sangue na boca do seu ataque vampiresco, além de cuspir bifes do pescoço do negrão.
– Não tem polícia aqui, não?
– Pôrra de polícia...
– Você é viado, é desgraça?
– Ele dá cu...
– Quero comer ela... Aquela gostosa...
– Tá perdendo tempo, ela dá pra todo mundo, o mundo todo...
– Ê desgraceira...
– Bora, pôrra, fode logo esse filho da puta...

Ecos da multidão.

De repente, para não atenuar ou morrer a atmosfera fatal o branco, em sorrelfa matreira, atacou o negro, que golfava sangue, observado mais de perto por seis ou sete pessoas entre dezenas que participavam da roda. Um murro no lombo, de mão fechada de cima para baixo. O dedo mínimo estalou. O negro caiu em capoeira, girando, rodando e na curvatura, a pernada direita, vinda de cima, fechou o olho direito do branco. Ele rosnou, gritou e ardeu. Era um ciclope agora.

– Puta que pariu... Se fudeu.
– Vá, viado.
– Viu, que eu disse?

Em urro Neanderthal e guiado por uma visão, o branco de estúpida monstruosidade saltou na frente do negro. Incrédulo, recebeu um golpe forte no meio da cabeça, um martelo de braço. Ficou zonzo e desorientado, fatalmente perderia. Uma negra de pés descalços veio correndo pelo paralelepípedo com um balde de água e derramou, assustada, na cabeça do negro. O choque da água com o corpo suado e ferido inflamou, e numa virada de urso, acertou o osso zigomático do lado esquerdo. Um animal miserável era aquele negro. Fungava sangue em silêncio. Olhava enfurecido o oponente. O sangue esguichava pulsante.

– Ninguém vê Deus, aqui?
– Vá se fudê, rei...
– Em nome de Jesus, meu pai!!!
– Sai daqui desgraça, vá pregar sua religião de ladrão nos infernos...

Um de frente para o outro, olhavam-se, miravam-se, estudavam alguma estratégia de luta para impor sobre o adversário. O branco xingou o negro, que sempre calado, mostrou o dedo médio em riste. A platéia em êxtase incentivava xingando-os também. Do lado de fora da roda uma dupla de ladrões fazia descuido; o vendedor de cafezinho viu tudo, mas ao perceber o olhar satânico que um dos descuidistas dispensava para ele, fez vistas grossas e se afastou com suas garrafas térmicas de café. Do outro lado, na esquina da rua Saldanha da Gama, uma prostituta assediava um gringo apalermado com a arquitetura renascentista do Pelourinho. Ela ofereceu um boquete por cinco. Ele riu e foi embora, talvez não tenha entendido. Como não? A linguagem da putaria é universal. A luta recomeçou no meio da roda, no centro do Terreiro de Jesus. O negro deu um soco na testa do branco, que rodopiou, mas ao rodar o corpo, levantou uma das pernas que acertou o outro na região dos rins. O negro sentiu muito esse golpe inesperado, mas era mais duro do que qualquer escravo capoeira e repetiu o soco de cima para baixo no cocuruto do branco que mostrou a língua e caiu. A platéia urrava, gritava, ria e apostava.
– Levanta, pôrra...
– Olhe, desgraça, não posso perder meu dinheiro não, viu?
– Mete a pôrra nele, picolé de betume.
O negro em atitude de misericórdia pulou, girou no ar e desceu com mais um martelo no mesmo lugar em que dera o murro. O branco estava vencido, não havia mais força para levantar e partir para cima do negro. A platéia ria, aplaudia e cobrava uns aos outros. Uma senhora que ia passando para a missa, viu a cena derradeira e perguntou a um dos que assistiam a luta.
– Mas pra que isso?
– Passatempo, minha senhora, passatempo...
Afinal os dois ladrões roubaram o gringo...


Carlos Vilarinho-outubro 2009

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Ação pura este conto, Carlos. Sem rodeios. Gostei muito. Me fez revisitar "Jubiabá", o negro Balduíno, e principalmente "O desempenho", de Rubem Fonseca. Mas o estilo, a pegada, a firmeza da escrita: Carlos Vilarinho.
    Vou ajeitar um conto para te mandar. Nunca gostei muito dele, pois até hoje não achei um final adequado, mas do começo até o meio acho-o bom.
    Grande abraço e Feliz Ano Novo.
    Flamarion Silva

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