segunda-feira, 28 de junho de 2010

PARTE DOIS - O GATO

–Vai parar onde? (B)
–Parar? Parar pra que? Abre uma, dá um tirinho aí na sua carteira mesmo, se for boa a gente vai lá em casa e bota no prato...(O)
–Tá sozinho?(B)
–A mulher viajou, só tem o gato por testemunha...(O)
–E se for baldeada?(B)
–Ora... A gente derrama tudo aqui no carro mesmo, bebe umas quatro cervejas e vai pra casa dormir...(O)
–Bom, essas duas bastam, né? Não vou ficar "no saci" entrando em boca de cocaína de madrugada. (B)
–Claro, a gente nem tem mais idade pra isso... (O)
–Que papo o seu de Deus, cara...(B)
–Besteira... Rola... E você emendou com um bocado de coisa do arco da velha.(O)
– “Arco da velha”, tá retado hoje... Aprontou aí? Vou encostar e “tum”, jogo rápido, viu?(B)
(tum) (O)
(tum) (B)
–Pôôôrraaaaaa! (O)
–Veneno da pôrra!!! (B)
–Vamos lá pra casa. (O)
–Vamos comprar cerveja, tem o que beber lá? (B)
–Um conhaque velho da pôrra. (O)
–Lacrado? (B)
–Pôrra de lacrado, tem uns três dedos, pare no posto pra umas latinhas, a gente aproveita desce da outro “tum” e bebe duas ou três lá mesmo pra amenizar a travação contemporânea. (O)
– “Travação contemporânea”, puta que pariu... (B)
–Temos cabedal para usar a linguagem decentemente por que não usar? Estamos de folga... (O)
–Mas é perigoso usar “contemporâneo”. (B)
–Por quê? (O)
–Fica parecendo que essa travação vem se arrastando há décadas e não é assim... Eu parei e você continuou. (B)
–Continuei, mas parei também... Se não a mulher me largava. (O)
–Você parou de cheirar por causa da mulher... (B)
–É... Sei lá... Talvez... Parei por algum motivo, não via mais “razão”, como os caretas dizem, pra cheirar cocaína... Aí, aproveitei que descolei uma mulher gostosa e parei... Ela também não gostava... (O)
–Mulher nenhuma gosta, a não ser aquela maluca que você arranjou naquele dia da eleição do Diretório dos Estudantes, lembra? (B)
–Lembro, a gente emprenhou a urna e derrotamos os partidários. (O)
–Pôrra, isso tem uns quinze anos, né não? (B)
–Tem. (O)
–E a criatura virou deputada, deve cheirar pra caralho lá no congresso. (B)
–É... O posto, para. (O)
–Bota em sua carteira mesmo, a gente dá um “tum” aqui... Pra gente não ficar saindo para o banheiro e despertar curiosidade de careta sem leitura...(B)
–É verdade...”tum”... Toma... (O)
– “tum”... Será que a vida era melhor naquela época... Naquela contemporaneidade” diria você... (B)
–Alguma coisa acho que sim... Acho que tinha mais respeito uns pelos outros... (O)
–Como assim? A gente não respeitou as leis eletivas para emprenhar urna... (B)
–Besteira, ali era uma eleição de estudante... (O)
–É, mas quem garante que sua namoradinha muito doida da época e hoje deputada não fez, ou faz, falcatruas dessa estirpe na política “à vera”? Você garante? Acha que ela respeita a legislação e o que diz o TSE? (B)
–Eu não garanto nada e não é só ela que apronta ou desrespeita as leis, ou manipula votos, ou sei lá... Os caras tão aprontando com o dinheiro público, desrespeita o meu, o seu bolso, o mundo inteiro fica sabendo e eles nem aí... Caras de pau. E a gente já conversou sobre isso lá na boca. (O)
–Pega as cervejas, o troco e vamos... Você disse que está sozinho, não foi?(B)
–Eu e o gato. (O)
–Pluto? (B)
–Não, chama-se “Félix” (O)
–Ah, bom! Fico descansado... Ele não é delator como o de Poe... (B)
–Não, que é isso? Ele gosta de leite... (O)
–Caça, pelo menos? (B)
–Nunca vi barata nem rato lá em casa... À noite ele fica ligado. (O)
–E o carro? Aquela sua rua é cheia de ladrão. (B)
–Deixe de preconceito, o bairro é pobre, mas é limpinho, e os “bichos soltos” da área conhecem você... Sabem que você é o professor maconheiro... Isso é uma glória para eles, sabia? (O)
–O fato de eu ser professor ou maconheiro? (B)
–Os dois. (O)
–Coitados... Conheço um médico que só atende depois de cheirar uma grama. (B)
–E o engenheiro que fumou pedra e construiu a piscina sem ralo. (O)
–Conheço esse também (risos)... (B)
–Aqui... Pode deixar o carro aqui, sem problemas, a rapaziada ali olha... (para os jovens sentados na calçada que os observavam ao sair do carro) “Aí moçada dê um look, no móvel, se ligou?” (O)
–Aí moçada! (B)
(escadas)
–Não repare a bagunça... aliás você também é bagunceiro. (O)
–Esqueceu que conheço a casa? (B)
–Fizemos muitas farras aqui, não foi? (O)
–Isso... (B)
–Bichaaaano, bichaaaano, ali... Coloque as cervejas na geladeira e traga um prato da cozinha... Vá lá, a casa é sua, você sabe todos os caminhos, vou colocar leite para o gato... Bichaaaano... (O)
–Sempre literatura fantástica... (B)
–É, sempre foi meu fraco, esse livro é bom... Tem um “Ladrão de Cadáveres” aí, muito legal, “Bicho Papão” também... (O)
–Dino Buzzati? (B)
–Isso, não gostei muito porque ele matou o bicho – papão, mas a narrativa é ótima... “O Homem da Areia”, excelente e “Teleco, o coelhinho”, conhece?(O)
–Conheço... O primeiro de Hoffman e o coelhinho de Rubião, fala-se pouco desse autor na literatura brasileira...(B)
–São as tais injustiças dentro da literatura... A literatura é como a vida...(O)
–Aqui, vem, “tum”... (B)
– “tum” (O) A cerveja...
tum” (B)
–Outra já? “tum” (O)
–A cerveja e o brinde, a nós dois, a Félix que está quietinho bebendo seu leitinho e à literatura que faz com poucos conheçam muitos... (B)
(brinde)
–Pôôôrraaaa, caralho, puta que pariu... (B)
–O que foi? A parada caiu no chão?(O)
–Não...(B)
–Aaaaaaahhhhhhh! (O)
–Caiu no leite do gato. (B)



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3 comentários:

  1. Li as duas partes... É ficção ou acontece? Muito estranho, coisa de doido

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  2. É ficção mesmo ou acontece? Coisa de doido

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  3. Loucura, cara... Você diversificou o pensamento sobre os usuários de droga, não é só o jovem irresponsável, mas gente grande, com família...Valeu, escritor! Tem que fazer pensar...

    Uma amiga

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