sexta-feira, 7 de maio de 2010

NOSTAGIA URBANA E SAUDADES DE UM AMOR NÃO CONCRETIZADO



Foi num clima de romance que fui pela primeira vez à Ponta de Humaitá, na Boa Viagem. Tinha dezesseis anos e Berenice quinze. Foi a ela que ofereci “chega de saudade” como se fosse eu que tivesse escrito, dois dias depois ela descobriu tudo ao ouvir um vinil que eu mesmo presenteei e não lembrava. Tom & Vinícius. Zangou-se com razão, daquele dia em diante comecei a reparar melhor as imagens ao meu redor e rabiscar letras genuinamente minhas para Berenice. Pensamos assustados, já no Humaitá, que todo aquele sol que ali se ia, cairia sobre nós e nos engoliria. Era um sol enorme e alaranjado, parecia estar se espreguiçando, que a Ponta de Humaitá oferecia a nós dois amantes. Eu jamais esqueceria Berenice e seus olhos oblíquos e tristes. Seu rosto liso e macio que dava forma a sua voz pueril e seus cabelos de Iracema. Naquele instante ali, esqueci a seleção de Telê. Só Berenice dissuadia meu pensamento canarinho, até então o que me importava era ganhar a copa do mundo em Barcelona, Madri ou nas ilhas Tenerife. Sonho que se frustrou mais uma vez naquelas datas, como se sabe na longínqua alcova do estádio Sarriá . Então andei com Berenice sobre a cidade de São Salvador.

Desde sempre sentia meu envolvimento intrínseco e peculiar com os lugares que ia, sobretudo com meu pai. Lembro-me perfeitamente que toda vez que chegávamos, eu e meu pai, a praia de Itapuã, aquelas ossadas gigantes de baleia espalhadas sobre a praia me davam medo e dor de barriga. Era filho da cidade e de vez em quando ouvia umas gargalhadas invisíveis de satisfação comigo. E achava que a natureza de Salvador ria para mim. A apreensão também me assaltava quando ouvia minha mãe falar de Fundação Politécnica. Era o dentista. Tinha pavor, aliás, ainda tenho. No entanto quando chegava à Avenida Sete de Setembro e via o movimento, já corriqueiro dos anos de chumbo, anos setenta, de AI’s e estrelas de ombreiras mal polidas, onde todos estavam submetidos à obediência civil americana, estúpida, grosseira e mortífera, sentia, entretanto e paradoxal ao movimento turvo, um alívio de amálgama. De uma forma ou de outra estava protegido em minha cidade. Praça da Sé e o Elevador Lacerda, Farol da Barra e a praia de Ondina.Tudo romântico e paisagístico, gostava de beber Fratelli e crush. A vida era muito mais que um sol estático, amigo Drummond. No entanto esse conjunto de coisas e sentimentos de urbis deve-se somente à minha existência. Em fazer parte do espaço que não sei como me escolheu e acolheu. Sem ser poeta e andando em lodaçais macadames, bebo, fumo, desejo, julgo e gargalho em Salvador. Um riso largo, caliente e tropical. Ao mesmo tempo em que entristeço, não sei mais onde está Berenice. Torno-me então poeta e sinto toda a quentura morna, modorrenta e cheia de pachorra, de um pôr do sol na lembrança tupi da índia Berenice. Suas frases tremidas e arfantes ao brincar comigo na rampinha do Teatro Castro Alves no dia que o papa morreu. Ela sumiu, virou-se e esqueceu que existo.

Agora estou na rua, como um miserável vagabundo. Rindo à-toa, sem itinerário, mas na rua, como um poeta sem casa engolido pela cidade de santos sábios velhos e africanos. Pregando poesia e arte nessa infinita inquisição. Na contramão, há as pregações irresponsáveis de inquisidores que não querem o poeta por perto. Ele, eu o poeta, bole insistentemente com a consciência, e a inconsciência coletiva ou singular, de quem pára para ouvi-lo. Deus e o diabo estão por aqui, na rua. Na 28 de Setembro, na Travessa da Ajuda, no Porto da Barra. Na madrugada com aqueles que servem à literatura marginal. À margem do querer e eu também escrevendo sem margem. Do ler, romantiquê. Não mais fui à ponta de Humaitá e agora só bebo conhaque. Hoje sem Berenice meu pensamento é imundo. Vivo nos becos sombrios ao lado do carnaval, na Rua do Sodré e na Gamaleira sem dilúculo de dedos rosados. Sem crepúsculo sonolento e romântico lá da ponta...

terça-feira, 4 de maio de 2010

COSME DE FARIAS (OU O QUE ACONTECE DE FATO COM OS JOVENS ATUALMENTE?)




Com olhos e ouvidos abertos para o social, ilibado, incorruptível, qualidade rara nos dias de hoje aos homens públicos e não públicos, pobre, e mais importante, um ser pensante. Era Cosme de Farias. Contam-se histórias interessantes sobre o rábula. Numa delas, diz-se: o major sentindo-se revoltado com a injustiça praticada contra um réu no tribunal, levantou-se e, ao lado do juiz e dos jurados, ficou por ali com ares de quem procurava algo pelo chão. Intrigado, o juiz perguntou o que ele procurava, eis a resposta “A justiça, meu senhor, que nesta casa anda escondida”. Debatia com o promotor e usava sua oratória ousada e eloqüente. No último dia dois de abril seria mais um aniversário de vida de Cosme de Farias.

O major Cosme de Farias saiu de Paripe onde nasceu para dar seu nome a uma rua de barro, em Brotas, antes chamada de “Quinta das Beatas”. A rua Cosme de Farias era uma quietude bucólica, talvez até lhe coubesse um movimento árcade, “carpe diem”, Cosme de Farias! Isso outrora. Hoje é uma praça de guerra, “Faixa de Gaza” de Brotas, jovens ensandecidos sem motivo aparente para tanta sandice sanguinária, mas cegos para as razões de sobra para indignar-se. Indignar-se pela acentuada (in)diferença social, a má distribuição de renda e emprego, a escassa cultura, escassez da cultura de pensamento e raciocino não a do quadril que estimula perversão ao invés de algum pensamento crítico para mudar ou transformar as coisas da vida, indignar-se pela falta de conhecimento em geral. Indignar-se pelo próprio desinteresse aos livros à mão cheia que estão nas prateleiras das bibliotecas criando mofo, teias de aranhas e traças pelo não uso. Mas não, matam-se. Simplesmente, matam-se. Não sei se vale de alento repetir o bordão da comunidade que se conforma fácil e se acomoda prisioneira dentro de casa: “a violência está em todo lugar”... Está mesmo, mas...

Cosme de Farias morreu pobre, deixou um legado de sabedoria para a grande maioria dos seus vizinhos. Parece que tão valiosas informações não foram passadas para gerações vindouras, excetuando aos que de fato trabalham.
Tudo indica que deixou pérolas para os porcos.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

TRECHO DE UM DOS CONTOS QUE COMPÕE O LIVRO "O VELHO"

Um dos meus contos que mais gosto - TRANSE RITUALÍSTICO

Foi quando lambi Eleonora pela primeira vez que a minha memória brilhou. Fingia que dormia e ia, em seguida, espreitar minha mãe e meu pai antes de dormir. Ouvia de mês em mês meu pai dizer para minha mãe.

– Ah, Luciana! Que maravilha de sangue.

Ele estava com a cabeça enterrada entre as pernas de mamãe. Sempre tive curiosidade de saber o que aquilo significava e voltava para a cama com o gosto de sangue na lembrança. Ficava intrigado também com o sussurro de pathos de minha mãe emitia. Parecia uma comoção empírica que ela tirava do fundo da alma. Ao mesmo tempo a angústia e o remorso de pecador me perseguiam lado a lado. Sentava na cama e rezava o pai-nosso e a ave-maria.

– Não me castigues, ó Deus, todo poderoso! Livrai esse filho, ainda menino, da expiação luxuriosa.

E então estudava Latim para me tornar padre. Havia um sacerdote estranho e esquisito, que contava histórias escabrosas e em todas as oportunidades as contava num ímpeto irregular, olhando para mim. Como se soubesse o que eu seria em poucos anos a partir dali. Tinha uma fundura nos olhos e um olhar penetrante de quem quer hipnotizar. Todos tinham medo, menos eu. Eu ria de través querendo despertar um desejo obscuro. Foi assim que percebi qual a data em que meu pai chupava o sangue de minha mãe. Era todo dia vinte e oito. Cresci espionando todo dia vinte e oito do mês. Quando era adolescente, lá pelos quinze, dezesseis, eu olhava e depois me masturbava gozando um prazer estranho. Prazer de ter minha mãe. Queria ser Édipo. Acho que minha mãe chegou a perceber, pois um dia, ao andar pela sala, ela baixou os olhos em mim e me viu teso olhando as suas ancas.

E assim fui crescendo, esperando ter uma mulher e sem conseguir nenhuma.

Eleonora chegou para cuidar de meu pai. Era uma sarará bonita e grande, cheia de sardas pelo corpo. Meu pai ficou estafermo, não servia mais para nada. Minha mãe ia receber o soldo da aposentadoria e deixava a metade na farmácia. Se não fossem as casas de aluguel que construiu, teríamos passado fome. Eu não sabia o que eu mesmo era. Não consegui ser padre. Um dia vi minha mãe conversando e gesticulando muito forte com o sacerdote. Não sei o que houve, mas depois desse dia ela nunca mais foi, nem me deixou voltar à igreja. Ali, naquele tempo, eu já sabia o que significava a cabeça de meu pai entre as pernas de minha mãe. Era quase um masturbador profissional. Entretanto sabia que ainda faltava algo em mim que por certo se concretizaria algum dia.

– Ah, Luciana! Que maravilha de sangue.

Era um silogismo em que faltava a inferência da conclusão. Eleonora então fazia o seu trabalho regiamente: fazia a comida, lavava a roupa e banhava meu pai todos os dias. Eu a olhava com uma fome diferente. E algo grunhia na minha barriga, descendo pela virilha. Comecei a pensar qual seria o dia da sangria de Eleonora. Tentei de várias formas olhar o volume entre as pernas dela mas não conseguia discernir. Eleonora era tão grande quanto o que havia entre as pernas. Não sabia se o volume que via era natural ou fabricado colado à calcinha. Também ela fechava a porta durante o banho, bem fechada, além de, ao que parece, tampar a fechadura com papel higiênico.

domingo, 2 de maio de 2010

O LIVRO "O VELHO -18 contos cotidianos e fantásticos" está à venda na livraria LDM na rua Direita da Piedade, em frente ao Banco do Brasil, ou pelo contato de email em c.vilarinho@yahoo.com.br, sendo assim pelo correio ou entrega a domicílio.Preço R$ 25,00.