sábado, 23 de janeiro de 2010

A PELEJA DO SINDICATO CONTRA O DIABO

Zuco completou cinquenta e sete na última semana, há vinte anos tornou-se alcoólatra depois de encontrar sua mulher enfiada na cama com um jovem universitário. Naquele dia a vida acabara para Zuco que ganhava trinta salários mínimo, era coordenador no Pólo Petroquímico de Camaçari dos operadores de alguma coisa lá por dentro das empresas que o compunham. Não tinha filhos e se apaixonara por Edezuíta, sua mulher, quando a conheceu no puteiro da Gameleira, perto da Ladeira da Montanha e Praça Castro Alves, em Salvador. A devoradora de homens prometeu a Zuco amor eterno e fidelidade sutilmente com os dedos cruzados nessa hora. Zuco acreditou e construiu uma casa com tijolos de vidro dividindo a sala de jantar e a de visita, dois andares e suíte nos cinco quartos em Cosme de Farias, bairro pobre do centro da cidade. Aliás, dizem as línguas, hoje em dia Cosme de Farias é o paraíso das putas, houve uma proliferação insana e sensata, paradoxo estranho que os homens apreciaram de verdade. Há o pensamento que o próprio Cosme de Farias se vivo estivesse, conhecido como advogado dos pobres, sujeito de ilibada conduta e de caráter acima da ordem, aceitaria e daria guarida e proteção às moças que tanto servem aos homens com tamanha ternura e prazer da carne. Edezuíta recebia sempre suas amigas de antiga profissão e não economizava na fartura. Zuco fazia gosto e dava conselhos as que ainda estavam na luta diária.

Mas Zuco não suportou a traição, chorou e bebeu vinte e um dias seguidos. Começou a faltar no trabalho e voltava para casa apreensivo e receoso de novas descobertas. No entanto um vizinho próximo, chamado Gumercindo, porteiro de um prédio no nobre bairro da Graça e que gostava da amizade do Coordenador de operadores, disse-lhe cheio de dedos que Edezuíta fazia aquilo há muito tempo, inclusive ele, Gumercindo, tinha sido seduzido. Não cedeu pela consideração e admiração que tinha com o amigo. Zuco ao saber de mais essa enveredou de vez na maldita. Aos poucos tudo perecia aos seus olhos, por dentro era uma gruta oca e escura que ecoava a todo o instante como um estribilho de carnaval a palavra “côrno”. Começava a beber às sete da manhã, esqueceu do Pólo Petroquímico e quando o dinheiro acabou juntou-se a outros três traídos como ele e começaram a formar o sindicato da cachaça contra as mulheres ingratas. A revolta de Zuco, o mais novo côrno, era tanta que ele tentou ser gay. Encachaçado, arriou as calças e pediu para Gumercindo o amigo mais próximo e que era nutrido entre ambos uma certa ternura que não o considerasse dessa vez, empurrasse tudo. O vizinho, diante daquele ânus desnudo, sentiu nojo e se arrependeu de não ter empurrado tudo em Edezuíta. O desespero tomou Zuco por inteiro, perdeu a verdadeira amizade do bom vizinho Gumercindo que evidentemente depois daquela cena repugnante somado ao desprezo que tinha dos homos, o que muitos dizem ser preconceito de machão no armário, não deu mais bola, nem mole para Zuco. Dizem lá em Cosme de Farias que Gumercindo vive com Edezuíta lá em Cajazeiras. Houve, depois de uns três meses daquela cena grotesca das calças arriadas, o espetacular flagra da esposa do porteiro: os dois, Gumercindo e Edezuíta, enroscados um no outro na antiga cama do ex-amigo e agora alcoólatra, quase gay. Sabe-se lá se é verdade, o fato é que os dois sumiram de Cosme de Farias.

O sindicato ganhou força e confiança com a presença do côrno ilustre e que era o mais bem pago entre tantos. No entanto não pingava mais grandes somas para o bolso de Zuco que perdeu também a conta do banco onde era cliente há quase vinte anos. Desde pequenino quando começou a trabalhar numa livraria na Praça da Sé. Tempos que os escritores eram lidos e suas obras faladas e discutidas em cada canto da cidade da Bahia. Hoje, ao que se consta, os livros estão em guerra contra a indústria do famigerado pagode de conotação sexual fomentado pela própria mídia em descaso da transformação social. Foi o que disse um poeta que também fazia parte do sindicato da cachaça e o único que não era côrno.

Sem dinheiro e dormindo num quarto imundo em companhia de Sabará e Nariz de Venta, respectivamente diretores do sindicato, Zuco passava os dias esmolando e ao entrar em alta embriaguez clamava por Edezuíta com a voz embargada e chorando a dor de côrno mais doída que a Rua Cosme de Farias atestara. Bebia tanto que às vezes não conseguia chegar ao quartinho imundo e dormia pela rua mesmo. Um pastor de uma igreja evangélica e que se dizia ex-ladrão e ex-maconheiro, comentou na igreja que vira da sua janela às duas da manhã Zuco sendo currado por dois ladrões pretos. A conversa ganhou a rua inteira, pois beato e beata que se prezam não guardam segredo, sobretudo dos pecadores, sentença também saída da boca do poeta que não era côrno mas vivia bêbado colando palavras em versos e em frases como aquelas. Em face disso, depois dessa suposta falácia nascida no salão de uma igreja evangélica, Zuco era carregado por Nariz de Venta que era o mais forte e o que mais demorava de ficar bêbado. Aliás, essa foi a plataforma usada pelos alcoólatras para eleger Nariz de Venta presidente do sindicato da cachaça em Cosme de Farias e Zuco mentor intelectual. Passou a acordar mais cedo, o dia ainda não dava bolas para o sol e lá estavam Zuco e Nariz de Venta, geralmente eles dois, pois Sabará não se agüentava em pé, levava quarenta a cinquenta minutos para levantar do chão frio que dormia, à caça de cachaça que eram arriadas nos trabalhos de candomblé para o Exu Tranca Rua. Um dia Sabará conseguiu se levantar a tempo de acompanhar os dois na empreitada. Meio dormindo, meio acordado ao chegar à encruzilhada do Exu deu para tremer e urinou-se. Começou a gaguejar e disse que estava vendo o Exu entornar a cachaça. Em sucinta narrativa, Sabará dizia o que via:

– Virge Nossa senhora, valei-me meu pai...
– O que é homem?
– O bicho tá ali...O bicho tá ali...
– Sabará você não está em condições de nos acompanhar mais, isso é delirium... Tem que internar o homem... – Disse-lhe Zuco para o homem que de amarelado pela cachaça foi esverdeando de medo e antes de cair duro disse:
– É vem ele, ele tá vindo, é horrível, ele tá dizendo que é a própria desgraça, ele quer pegar você, Zuco, a ideia foi sua... A ideia foi sua, ele que tá dizendo... Virge Nossa Senhora, tá bem aqui...Aiaiaiaiai, é ele mesmo, você Zuco... É você, ele tá retado com você... A ideia foi sua, ele sabe de tudo...
– Que ideia?
– A ideia de roubar a cachaça dos bichos...

O coração de Sabará explodiu e ele morreu ali mesmo. Soube-se tempos depois por uma Mãe de Santo lá da Baixa do Brongo, em Brotas, que Exu Tranca Rua chegou ao inferno com Sabará puxado pela coleira e o diabo em pessoa o recebeu. Mesmo assim não satisfeito soltou fogo pelas ventas horríveis e satânicas e gritou alto para os céus “Eu quero Zuco e aquele poeta cheio de semântica que vive dizendo que você, Senhor, não existe, e não esse desgraçado com bafo de combustível e cara de oreba que vocês me mandaram...” a ira das trevas foi tão grande que os quartinhos dos exus em todos os candomblés da Bahia chegaram a temperatura de cem graus.

Aqui na terra, alheio aos encantos e magias naturais, mesmo porque era e sempre foi descrente, Zuco e o sindicato lamentavam a morte do amigo Sabará. No entanto as palavras e a cara de horror do amigo morto não saiam da cabeça de Nariz de Venta que um dia antes de ser côrno viu a mulher que o traía receber uma entidade que se dizia Padilha, e num lance de segundos reparou bem rente ao corpo da mulher traidora a imagem da tal Padilha rindo e dizendo a ele que ia se aproveitar daquele corpo. Depois desse dia Nariz de Venta foi côrno até embaixo d’água, a mulher se transformava de uma hora para outra, não podia ver um homem que arrastava para um canto, qualquer que fosse o canto. Fizeram um evento monástico em homenagem a Sabará, o poeta que não acreditava em Deus fora seminarista por promessa de mãe, a mãe morreu ele rebelou-se do rebanho e desde então vive poetando dizendo que Deus não existe. O poeta celebrou o momento eclesiástico "em águas" no meio da rua na escadinha que dá acesso ao Bonocô onde as reuniões do sindicato se realizavam.
Enquanto isso o diabo exigiu que todos os Exus cachaceiros trouxessem para o inferno o côrno Zuco que era abençoado e dono de pureza inigualável por isso casou com uma meretriz e o poeta que não acreditava nem em Deus nem no diabo, isso o enfureceu. Uns três meses depois, Zuco, Nariz de Venta e o poeta andavam a esmo numa passarela do Bonocô lá perto do Brongo. Foram avisados pela mãe de santo Licinha de Yansã para não roubarem mais a cachaça do Exu Tranca Rua que ele estava de olho nos três. Nariz de Venta foi o primeiro a recuar e disse:

– Isso é verdade, esses monstros vivem atrás de nós e Sabará tinha razão, tenho sentido alguém nos espiar lá do outro mundo.
Poeta e Zuco gargalharam e ao pedir as horas a um homem de chapéu cobrindo o rosto e todo de preto que passavam por eles na passarela, eis a surpresa:
– É a hora de levar vocês comigo...

O espectro franzino e que aparentava pouca força ou força nenhuma ergueu os dois, Zuco e poeta, com relativa facilidade ante os olhos cheios de medo, terror e crédulos de Nariz de Venta que foi o primeiro a desmaiar. A força do Exu era tanta que ante o desmaio dos líderes intelectuais do sindicato a entidade de rua levou os dois inconscientes a presença do diabo. O rei das trevas esbravejou, queria os dois mortos para então engolir a alma, eis que num arroubo de monastério o poeta recitou o corvo e disse-lhe:

–Perdi em outrora tantos amigos tão leais, perderei também este em regressando a aurora... Nunca mais...”

O diabo inculto, estúpido e ignorante, não conhecia aqueles versos de tão fabuloso escritor, Zuco por sua vez olhando nos olhos do cão infeliz disse-lhe:

– Não tenho medo de mais nada, nem de você horrenda criatura...

E assim o diabo incrédulo com a petulância de um poeta e um côrno desgarrado, pôs-se a chorar...

Carlos Vilarinho 2010

domingo, 17 de janeiro de 2010

DOG DEAD

Quando chegou do Rio de Janeiro, logo após o carnaval, onde dançou e suou suas carnes duras, Marlene desconfiava que tudo na família havia mudado. Há dois anos, juntou-se a Dog Dead e seguiu para conhecer o Pão de Açucar, o Cristo Redentor de braços abertos e hospitaleiros e também a Favela Dona Marta onde morou por uns tempos, mas não muito. Era esguia com uma polpa da bunda saliente e desejosa. Curioso é o trânsito de toda a história até chegar ao cheiro agradável que Marlene exala por onde passa. Aqui na Bahia, ela catava lixo em Canabrava. Aos dezessete anos passeava imunda procurando baldes de lixo em Pituaçu. Achou um distante dos restaurantes que eram oferecidos naquela área. Era mais limpo, de impressionar lixeiro acostumado com cheiro azedo. Marlene viu sacos com restos de macarrão e legumes cozidos num zoom espetacular de faminto miserável. Babou. Sentiu um peso vindo do alto nos ombros. Mordeu o peso, uma peça de carne com uma pedra enfiada no meio. Uma Padparadscha Sapphire que o próprio Dog Dead apelidara de “papada safira”. Marlene só soube disso muito tempo depois que um homem de bigode ralo, vestido a caráter de branco, mas muito sujo, deslizou pelo lixo e com dificuldade de frear, esbarrou-se e beijou Marlene de roldão. Todos os badameiros da família levantaram suas foices, ou algo parecido e afiado tanto quanto, e urraram um urro Paleolítico. A moça beijou uma boca pela primeira vez, em seguida, depois de oito segundos de beijo, Marlene e Dog Dead riram juntos. Aquele momento, o dono do vento Uel conspirou e Dog Dead caiu de amores pelos dentes marrons de Marlene, pela boca e pela pedra vermelha que vinha perseguindo há tempos e, depois de uma surra que levou de viciados em itinerário errante, coincidentemente, ou sincronicamente, beijou Marlene que tinha uma Safira na boca. Os outros da família de badameiros conformaram-se logo. A “papada” que procurava parou num filé mignon no alto Pituaçu. Sabemos como a pedra Safira parou ali. A empregada da casa em Pituaçu chamada Vivian, que só tinha a quarta série e tentou, em outros tempos, comprar o diploma de nível médio e quase foi presa junto com o professor de Matemática, o estrambelhado José Silva, que também era Coordenador Pedagógico da escola, quase comia carne mole e nobilíssima depois que só a metade do golpe que tentara surtiu efeito. Vivian pensou em dar um bom jantar para seu homem, o lixeiro Radamés que varria as ruas da Pituba subindo pelo Itaigara. Radamés ajudou uma senhora rica lá do Itaigara a subir as escadas do seu prédio depois de uma forte crise de labirintite na porta de um importante shopping de Salvador. O prédio era muito pomposo, estavam em casa: a nora e uma neta de dezenove anos que olhavam distraidamente o mar da Bahia e nem viram a velha rica chegar carregada por Radamés. Lá no Shopping ninguém se manifestou. A velha rica deu a Radamés um pernil de porco e pagava o seu café da manhã na luxuosa padaria e lanchonete da Pituba depois desse ocorrido. O lixeiro sem nenhum constrangimento, pois tudo era lucro para ele, passou a tomar seu café da manhã religiosamente todos os dias com a velha rica que ele carregou seis andares nas costas e salvou-lhe a vida na luxuosa padaria da Pituba desagradando a quem usava perfumes doces. Ou não. Até então, Radamés não sabia o significado de café da manhã. Também para alívio dos engomados que frequentavam a luxuosa padaria, não durou muito o reles constrangimento about um gari tomar seu breakfast. A velha rica morreu quarenta dias depois.
Vivian jogou o filé mignon pela janela para cair num lixão perto para buscar em seguida e atestou para o casal Pitty e Luan que outra carne esverdeada, tirada lá do fundo da geladeira mal lavada, que aquela era a carne nobre estragada.

Infelizmente Radamés jamais comeria filé mignon.

Dog Dead era o receptor da Safira roubada, sabemos disso. O esperto dormiu no Aeroporto Deputado Luis Eduardo Magalhães que antes se chamava Aeroporto Dois de Julho e ninguém sabe, nem entende direito, o motivo da mudança de nome, mesmo sendo o ilustre deputado tão ilustre tanto quanto a independência da triste Bahia. Dog Dead assistia filmes de Billy Wilder e achava-se personagem de Raymond Chandler. Mas Raymond não o perdoaria, a Safira passou diante de seus sonhos num banco de aeroporto. O dentista e ator de teatro Luan driblou todos os pensamentos, parecido com a loura fatal de “Double Indemnitty” que Dog Dead assistia sem parar, e saiu do aeroporto com a “papada safira” tranquilamente, em seguida passou no açougue para comprar o filé mignon.

Em casa, ao chegar, Luan administrou uma discussão da mulher, a patricinha Pitty, com a empregada Vivian. Luan Já havia colocado a Safira no filé mignon que trouxera com ajuda do açougueiro Tatai. Luan prometeu dois por cento sobre o preço da “papada safira”, rosada como o filé mignon, a Tatai.Infelizmente Tatai jamais receberia tal porcentagem. Em seguida daria o zignal na patricinha Pitty, se não fosse o plano original e instantâneo que Vivian teve ao ouvir:

– Guardei um filé mignon no freezer, não é para fazer por esses dias, deixe que eu preparo...

Depois de jogar a carne nobre pela janela, Vivian incrementou a discussão com a patricinha Pitty. Luan não aguentou a zoadeira e demitiu Vivian quinze minutos depois de a empregada ter jogado a carne pela janela. Dog Dead estava na pista certa, esperto como Raymond, escorou-se no poste perto da janela e acendeu um cigarro em estilo noir. Marlene estava faminta, a peça de carne tombou em seu ombro, como foi narrado lá em cima. Marlene usava uma boina imunda e amarronzada. O branco original da boina já perecera nos caminhos da imundície. Dog Dead estava embaixo fumando na penumbra do poste nojento quando o filé mignon voador surgiu risonho e longe do forno de fogão iminente do Alto Pituaçu. Marlene cheirou a peça e babou, como também disse lá em cima. Talvez em quatro ou cinco segundos, Dog Dead aterrissou nos lábios da cabocla Marlene filha da mãe de santo Edenira de Oxum.

Edenira antes de ingressar no axé baba, morava na rua, então pariu Marlene de um ladrão descuidista da Avenida Sete de Setembro. O ladrão, pai de Marlene, chamava-se Azul, morrera confundido com outro assaltante. O ladrão que era para morrer chamava-se Budião e fazia ponto na rua do Sodré ao portão da antiga casa do poeta Castro Alves. Azul foi fuzilado às seis da tarde de uma terça-feira de carnaval na Praça do poeta. Nenhum folião vai mais à Praça, então ninguém viu, mesmo sendo carnaval. Todos os holofotes estavam no circuito vendido do Farol da Barra a Ondina. Mas Marlene não sabia nada disso e não se importou. Beijou Dog Dead. Gostou. Dog Dead não fedia tanto quanto Marlene, mas ao olhar os olhos tentadores de Marlene, beijou novamente. E Marlene aceitou dessa vez com seu sorriso amarronzado. O vento soprava em fúria e estalava em ideias a cabeça de Dog Dead. Marlene por sua vez, pensou em sua família composta pelos badameiros João, Paulo Bosta, Cicinho, Edinha e Juliana Amor. Esses dividiam a comida que achavam no lixo de Canabrava, no lixo de Itapuã, lixo de Cajazeiras, lixo de Pituaçu. Marlene ouviu a conversa de Dog Dead num jantar de carne assada na brasa embaixo do viaduto Raul Seixas. Não havia outros mendigos ou badameiros só eles dois. Marlene comeu e quase não acreditou que aquela carne existisse “É macia, né?” Dog Dead prometeu uma casa para João, Paulo Bosta, Cicinho, Edinha e Juliana Amor. Essa última se engraçou com Dog Dead, ele comeu, mas nada sério.

Ao encontrar a “papada Safira”, Dog Dead guardou com carinho e esperteza dessa vez. No dia seguinte ao jantar e a noite de amor com Marlene, o Cachorro Morto, Marlene descobrira o que significava Dog Dead, ligou para o facínora que explorava ladrões baratos como D.D, ou seja ele mesmo, e ofereceu a Safira em troca de sigilo total e evidentemente muito dinheiro. Foi a última coisa inteligente que D.D fez em sua vida, até morrer asfixiado por duas mãos gigantes que estavam no rastro de um Cachorro, agora morto de fato.

Marlene consertou os dentes no Rio de Janeiro, sambou, rebolou, foi porta bandeira de uma escola de samba, campeã do carnaval sem trio elétrico e meio sem graça do sul maravilha. Não pegou o que tinha direito com D.D porque não sabia, casou com um italiano e voltou para a Bahia.

Foi recebida por Juliana Amor e Cicinho. Havia dois meninos pequenos no colo de Ju Amor: um filho de Dog Dead e outro filho de Cicinho. Paulo Bosta e João morreram de cirrose. Edinha foi presa depois que montou a boca de crack com o dinheiro que Marlene mandava do Rio de Janeiro...


Carlos Vilarinho 17/01/2010

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

LAVAGEM DO BONFIM

Afonso descia a ladeira da Preguiça ressaquiado da noitada anterior regada a pó e whysk red label. Alquebrado e seco por dentro, o jornalista precisava hidratar-se para agüentar a caminhada da festa e buscar algo de relativa essência e substancial para o jornal. Ele mesmo repetia sempre que as festas da Bahia eram balaios de gatos em tetos de zinco quente.

– Com a sua licença, senhor Tennessee...

Aquele sol na moleira fazia Afonso delirar.

–De onde vem os monstros, meu Deus?

Um roda de pagode com sete ou oito homens cantando e rebolando, outros mais na frente cantavam o hino ao senhor do Bonfim num misto de fé e profanação. O sino da igreja da Nossa Senhora da Conceição badalava, os fies saíam para a procissão. As baianas a postos, os sacerdotes também, representantes de outras religiões definiam eclesiasticamente a aproximação de todos numa única fé. Afonso bebeu duas garrafinhas de água enquanto olhava um grupo de baianas travestidas. Esbarrou-se numa mulher com uma flor vermelha na cabeça. Ainda em fissura da noite anterior, Afonso concentrou-se, jogou água em volta do corpo, esfregou os olhos e assuou sangue pelo nariz. Viu os políticos que aproveitam a festa para ficar perto do povo, encorajando-os a votar, engodo infeliz e usurpador. Aprumou-se e continuou andando para o Mercado Modelo, onde uma multidão sorvia-se de cerveja, suor e beijos molhados. Teve ânsia de vômito quando uma negrinha serelepe com um curtíssimo short entrando pelas beiradas glúteas ofereceu acarajé em flerte natural da Bahia em festa religiosa. Preferia um tiro de cocaína ardente. Pensou em calafetar cada rua e beco do Comércio da Cidade Baixa para conseguir escrever algo sobre a festa. Uma crônica, um conto, até um poema, que Afonso dizia ser de difícil engenhosidade. Mas começar por onde naquele mundo de quinhentas mil pessoas embaixo do sol escaldante da Cidade da Bahia? Haveria no mínimo um milhão de histórias a ser contadas e outras milhões que aconteceriam para contar em outra oportunidade. A mulher com a flor vermelha na cabeça apareceu em sua frente novamente, não se esbarraram, mas notaram-se um ao outro. O jornalista não queria mulher naqueles instantes, ainda estava travado de pó e o tesão escondia-se por dentro das calças que até para mijar era difícil de achá-lo, todo encolhido e inibido consequencia de tanto aspirar. Resolveu beber cerveja e olhar as pessoas. Viu quando alguns timbaleiros passaram correndo e arrastando a multidão, em sua maioria jovens saudáveis e brancos. Olhou a roda de capoeira do Mercado Modelo e lembrou da história contada por um velho barraqueiro do mercado, já morto:

– Foi pernada pra tudo quanto é lugar, meu filho... Esses aí? Capoeirista nada, os meninos da Baixa do Petróleo vieram aqui e quebraram eles na capoeira, todos eles aí, ó... Correram para a Ladeira da Montanha e quem os defendeu foram as putas...

Ao chegar à Praça Marechal Deodoro sentiu vertigens e um quase desmaio o levou. Se agarrou a um poste e procurou o Beco onde fica o Palácio dos Gatos. Bebeu água novamente e observou as pessoas que bebiam cervejas,whisky e cachaça á vontade com o gosto de festa de largo. Encontrou Maroca, pensou ser a salvação para dar um tiro de pó e conversar algo que despertasse o start do texto que precisava.

– Você é maluco? Vem pra debaixo de um sol desse trabalhar e ainda por cima travado? Pára com isso, cara... Tô fora, fui...

Viu novamente a mulher com a flor vermelha na cabeça, desde que se esbarraram a feição dos dois não mudara. Ele ressaquiado, sem vontade de nada, inerte, sem raciocínio e ela, por algum motivo, séria e agora, ele com mais calma, notou um desafio em seu semblante de mulher bonita e contrariada.

– O que será que aquela criatura procura?

As baianas travestidas saíram do Palácio dos Gatos, todos os homens divertindo-se e quiçá querendo de fato tornar-se mulher. Novamente outra roda de capoeira, dessa vez de turistas estrangeiros.

– Que loucura, o mundo inteiro quer se portar como escravo capoeira.

Faltava algo naqueles capoeiristas que Afonso de imediato percebeu: a falta de cor, o suor, a ginga e a linguagem não eram originais. Esperto percebeu que o pensamento dava sinal de via de regra, de uniformidade. Aproveitou o ensejo e começou a trabalhar. Escreveu na mente a capoeira. Mas queria mais, queria algo que mexesse com o povo na essência, que houvesse transformação. A capoeira transformara os gringos, veja só! Deu um muxoxo indignado e seguiu para Água de Meninos, Feira de São Joaquim. Chupou laranja e melancia, bebeu água de coco. Reidratou e esqueceu o pó. Pagode e samba em todo canto da Cidade Baixa, ficou em baixo do jato de água dos bombeiros da Calçada e foi à Praia do Cantagalo.

– Lá com certeza acharei algo para escrever... Se não o pessoal da edição vai me matar, posso até perder essa boquinha no jornal... Tenho que escrever alguma coisa da Lavagem do Bonfim.

Os mesmos, digam-se, as mesmas baianas travestidas novamente em seu caminho. Entrou num boteco para esconder-se do sol. Cheiro de fritura, cigarro, arroto, homem suado e cerveja. Novamente a mulher com a flor vermelha na cabeça. Olharam-se. Afonso ia ensaiar um cumprimento, mas desistiu. Lembrou da negrinha serelepe do acarajé que ele deixara para trás. Queria uma mulher agora. Mas foi um desejo efêmero, perguntou-se inexoravelmente como poderia divertir-se e trabalhar com as vítimas do Haiti precisando dele. Precisando de todos que ali estavam.

– É a natureza dando a resposta aos bostas.

Decidiu ir andando pela Praia do Cantagalo, saiu do circuito central, ficaria longe da multidão, dos gringos colonizadores e de riso fácil, como entende muito bem o que quer. Comer as negrinhas. Tinha um grupo de maconheiros na praia, havia um conhecido dos tempos de baba da faculdade.

– Afonso! Vai dar dois?
– Oi... Quero não...

Chegou ao Largo de Roma, nada tinha acontecido, ao mesmo tempo tudo rolava ao seu redor, mas o jornalista não tinha ideia do texto, não sabia o que escrever. Todos os temas do mundo ali em sua frente: pobreza, riqueza, nojeira, preconceito, beleza, coisas que dão barato, pederastia, pedofilia, políticos ladrões, políticos que se dizem honestos, sabe-se lá... Ladrões que tinham genes de ladrão... Afonso estava indignado com tudo aquilo e não conseguia entrar em algo para escrever.
Mas a mulher com a flor vermelha na cabeça tinha algo a revelar, só podia ter.

– Essa criatura... O que ela quer, afinal? O tempo todo com uma insatisfação parecida com a minha...

Finalmente depois de sete quilômetros, Afonso entrava na Avenida Dendezeiro, via a sagrada colina e a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim no alto. Sentia que estava sendo levado e agora, ao mesmo tempo, notou que havia algo no ar. Buscou, olhou ao redor mais uma vez entre centenas que já fizera. Seus olhos caíram numa moça bonita que passava em sua frente, a moça virou de repente e soltou um beijo em sua direção. Ele riu, mas não acompanhou, ainda sem tesão. A moça ao se afastar lamentou dando de ombros. Cena comum nas festas baianas. Olhou, continuou olhando, seu sensor de escrita estava forte e dava sinal de alerta. A mulher com a flor vermelha no cabelo.

– É ela... Ela vai me dar esse texto.

Manteve distância, o grupo das baianas travestidas também estava próximo, passou pelo Colégio da Polícia Militar. Comprou uma cerveja e saiu andando. A mulher com a flor vermelha no cabelo estava na manha, matreira, sorrateira, como uma cobra na hora do bote. Havia visto algo. Afonso procurava. Muita gente na frente, subindo, descendo, nos lados, nas casas, nas varandas, os bares entupidos, feijão, dobradinha, farinha. Gritos, sussurros, beijos, coladas. Ela viu algo. Não conseguiu chegar, muita gente. Passaram pela Baixa do Bonfim. Subiram a colina. A igreja ficava à direita, foram para esquerda. Como quem vai para a Pedra Furada. O beco da viadagem. As baianas travestidas. Dois se beijavam. O flagrante.
A mulher com a flor vermelha no cabelo.

– Vagabundo... É assim que você é homem? Pendurado nos beiços de outro macho? É assim que você não dá conta de mim, safado... Viado, descarado...

A correria foi geral, ele saiu correndo em direção a Humaitá, ela atrás junto com uma multidão embriagada e ávida para ver e saber dos problemas alheios.
Afonso mandou o texto assim que chegou em casa, levou meia hora para escrever. Depois se jogou na cama extasiado e indignado com o mundo que só pensava em festas.

– A natureza dará a resposta aos bostas...

Carlos Vilarinho 2010

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O SALÃO

Quando Wilber entrou no salão, eu estava na cadeira, um pouco sufocado pela capa que evitava que os pelos cortados caíssem na roupa e provocassem coceiras, olhando no espelho para uma coroa gostosa que estava do outro lado. Segurei com força atmosférica a imagem das coxas e da bunda deleitosa e refestelada refletida em minha frente, em viagem onírica, percebi mais abaixo um sinal na panturrilha tenra. Era a forma de uma borboleta cinzenta. Pensei que fosse queimadura de carona de moto, mas não, era um sinal. Wilber então, fungando e ofegante, disse:

– Velho, você deixou um pimpão horroroso em meu cabelo, rei... e aí?
– Como? Respondeu Lucas que passava a dois e meio em mim.
– Como, um caralho, rei... Ó pra í , ó... Uso esse pimpão aqui porque um dia serei rei na dança de pagode, mas aqui do lado? Viajou, rei?

Lucas nesse instante me deixou um pimpão moicano. Parecido com o de Wilber, só que o meu era todo para o lado esquerdo da cabeça, não era centralizado. Fiquei com vergonha da coroa gostosa que me olhava em reflexo também do outro lado. Claro que aquele pimpão não fazia parte de mim, mas foi na hora que Lucas parou de passar a máquina e olhou para Wilber sem entender direito o que havia. Denotei isso pelo cheiro de maconha que exalava de Lucas, ele estava viajando no meu cabelo e deve ter viajado também no cabelo de Wilber. De qualquer forma, olhei Wilber pelo espelho em breve momento que não olhava a borboleta cinzenta. Ele não me viu como eu o vi. Sacou a arma e anunciou o assalto de repente, passou de um estado a outro, em atmo de faísca mantendo a cara de palerma pagodeiro que lhes é inerente. Olhei a coroa gostosa e vi o espanto inicial, ainda incrédulo. Ela fechou as pernas. Wilber olhava Lucas em êxtase desesperado como um coito proibido. Olhei meu reflexo no espelho e vi o último dos moicanos indignado e apreensivo, apavorado com a arma que Luzia na mão de Wilber. Léa, a dona do salão, para a minha surpresa, manteve a calma, no entanto o medo frio e escamoteado revelou-se em três ou quatro sílabas gagas. A outra, que passava uma pasta branca no cabelo da coroa gostosa e lívida de tensão no meu reflexo, parou a pastagem, deu um muchocho de já vu, cruzou as mãos e em rompante espetacular, tenso e em tentativa de poder, falou alto:

– Menino, faça-se de besta!!!!
Assustado!
– Mãe?

Eu, com os olhos pregados no espelho e sem tesão. Olhei através do reflexo e vi a coroa gostosa, lívida, mas levemente ofegante. Lucas com a máquina que rapava meu cabelo suspensa e em apreensão inquietante. A outra mulher, bem cabocla, ao fundo, em frente à poltrona de enxágüe depois do corte, chamada Cândida, eu acho, de olhos abertos, lânguidos, cheios de lágrimas. O comparsa de Wilber ao lado esquerdo dele olhando furiosamente a rua e com outra arma apontada para baixo, vestia a camisa do Esporte Clube Bahia o que denotava extremo mau gosto. Fazia um bico ordinário, pude ver bem de soslaio no espelho, e mais, numa rápida mas eficiente olhadela no horrendo tricolor, percebi que não havia dureza no olhar. Era encenação, pensei.

– Não se meta, mãe... Vou levar o dinheiro só desse aí que fez dança de rato em meu cabelo...
– Bora logo, meu rei... – Disse o comparsa preocupado.
– Você não vai levar porcaria nenhuma de ninguém... Se assunta, menino... Vá procurar um trabalho...

Léa, a dona do salão, contemporizou e ao se aproximar do jovem tropeçou nos pés da coroa com sinal de borboleta cinzenta na panturrilha e caiu por cima de Wilber. Ouvi um estampido seco de bala perdida e gritos agudos de mulheres em ataque de nervos. Me surpreendi com o tamanho dos meu olhos quando me vi novamente no espelho, era uma imagem ridícula o olhar assustado somado ao pimpão moicano lateral que servia minha cabeça. Se fosse um filme e estivesse em plano plongée certamente os cinéfilos ririam às minhas custas. Eis que vira-se para o meu lado.

–E você aí? Você de moicano esquisitão.
– Eu?
– Sim, você... Tem dinheiro?
– Eu...Eu...Eu não. – Disse com medo.
– Puta que pariu... Não tem dinheiro? E por que vem dá um trato no cabelo? O que faz da vida, moleque?
– Eu? (meio com medo, meio indignado pelo “moleque”) Eu sou escritor...
– Escritor? Pra que serve isso?
– Sei lá, nem eu sei... – Disse em arroubo misericordioso prevendo a morte.
– Escritor... Não tem dinheiro, mas tem palavras...
A rapidez de raciocínio de Wilber me impressionou.
– É... Mais ou menos isso.
– Certo... Talvez você não mereça de imediato uma bala na cabeça, terá muito o que contar sobre mim...
– Sobre você?
– Claro, serei “O Fenômeno do Pagode”
“Deus me livre e guarde” pensei.
– Wilber, faça o favor de sair daqui, menino. – Era a mãe de Wilber com as mãos na cadeira e prestes a servir de cavalo a algum orixá de rua que tentava pegá-la.
A coroa gostosa desmaiou. O safado do cabeleleiro maconheiro agarrou-lhe as ancas e deu palminhas na face de blush. Fiquei com ódio dele, dei razão a Wilber quase sem querer falar.
– É melhor consertar o cabelo do rapaz pelo menos...
– É o senhor tem razão...
Wilber com cara de choro e entre muxoxos de um lado a mãe e de outro o parceiro meliante que já guardara a arma que então soubemos era de brinquedo.
– Eu vou chamar é a polícia, isso sim... Cortar cabelo de vagabundo pagodeiro nenhum...
– Meu filho não é vagabundo, Lucas, dobre sua língua.

Tentava de alguma forma chamar a atenção de Lucas para o corte ridículo que ainda pairava em mim. Mas ninguém me olhava, a discussão tomou ares de família. Percebi a coroa recobrando os sentidos, levantei da cadeira e abracei-lhe cuidadosamente.

– Calma, foi tudo uma brincadeira do rapaz...
– E o tiro que ouvimos?
– Era de espoleta.
– Meu Deus! Mas que mundo nós estamos...
– Certamente... (blábláblá).


Carlos Vilarinho 2010

sábado, 9 de janeiro de 2010

PASSATEMPO

Um murro na boca e um chute no saco; o negro rodopiou e zonzo, tentou se aprumar. Como um bólido o punho do branco castigou-lhe a costela, ele se contorceu de dor, mesmo assim conseguiu ficar de pé e em guarda. Mirou os olhos e o queixo e num rápido jab, amassou o nariz do desgraçado branco e mais, um aú de capoeira, a meia lua de compasso, tirou-lhe sangue da orelha. Reagindo vermelho e fungando de raiva abraçou o negro e o derrubou, colocou-o em baixo e socou-lhe a cara, no terceiro soco o negro se desvencilhou e chutou-lhe o lombo. Ele urrou. Caído, com as mãos nas costas gritava e xingava: – Filho da puuuta! O negro chutou duas vezes pela frente; na terceira o branco segurou-lhe o pé e torceu. O negro se desmantelou em cima das pedras portuguesas do Pelourinho. Percebeu que ia ser chutado por trás e saiu catando ficha. Tomou rasteira do branco que voou e o agarrou como se fosse num coito anal, mordeu o cangote do negão como um vampiro sedento e maldito. Cuspiu o sebo salgado do pescoço do negro. Vacilou e um martelo enfiou seu pescoço tórax abaixo. Tomou um murro na omoplata, na saboneteira, como chamam. Os olhos do negro estavam injetados de raiva, a boca espumava; notava-se facilmente a carótida pulsando. Ficaram frente a frente, rodeando-se. A platéia: – Vamos, filhos das putas, acabem-se, cornos. O negro gingou, o branco riu em desdém diabólico, cuspiu no negro. A saliva pregou-se no peito esquerdo e descia escorrendo. Em ataque felino, com as garras pregadas no pescoço do negro, puxou-o para baixo e numa joelhada sensacional no umbigo, segurou-o pelo pescoço. Agarrou e apertou. O negro ia desfalecer, mas em golpe vagabundo segurou os colhões do branco; com o indicador e o médio furou os olhos do desgraçado racista. Só o indicador achou o olho, o olho direito. Um telefone nas orelhas e ao rodar um chute no cu, bem dentro do cu do branco, o fez cair. Os dois respiravam com dificuldade. O negro observava a dor do branco com as mãos no joelho em nítido cansaço. Um pingo de sangue pisado, preto e gosmento descia-lhe ao canto da boca. O branco, também forte como um estúpido animal, perdera um pedaço da orelha. O negro, maior do que Zumbi, cuspia sangue de um dente que já fora. O branco tinha sangue na boca do seu ataque vampiresco, além de cuspir bifes do pescoço do negrão.
– Não tem polícia aqui, não?
– Pôrra de polícia...
– Você é viado, é desgraça?
– Ele dá cu...
– Quero comer ela... Aquela gostosa...
– Tá perdendo tempo, ela dá pra todo mundo, o mundo todo...
– Ê desgraceira...
– Bora, pôrra, fode logo esse filho da puta...

Ecos da multidão.

De repente, para não atenuar ou morrer a atmosfera fatal o branco, em sorrelfa matreira, atacou o negro, que golfava sangue, observado mais de perto por seis ou sete pessoas entre dezenas que participavam da roda. Um murro no lombo, de mão fechada de cima para baixo. O dedo mínimo estalou. O negro caiu em capoeira, girando, rodando e na curvatura, a pernada direita, vinda de cima, fechou o olho direito do branco. Ele rosnou, gritou e ardeu. Era um ciclope agora.

– Puta que pariu... Se fudeu.
– Vá, viado.
– Viu, que eu disse?

Em urro Neanderthal e guiado por uma visão, o branco de estúpida monstruosidade saltou na frente do negro. Incrédulo, recebeu um golpe forte no meio da cabeça, um martelo de braço. Ficou zonzo e desorientado, fatalmente perderia. Uma negra de pés descalços veio correndo pelo paralelepípedo com um balde de água e derramou, assustada, na cabeça do negro. O choque da água com o corpo suado e ferido inflamou, e numa virada de urso, acertou o osso zigomático do lado esquerdo. Um animal miserável era aquele negro. Fungava sangue em silêncio. Olhava enfurecido o oponente. O sangue esguichava pulsante.

– Ninguém vê Deus, aqui?
– Vá se fudê, rei...
– Em nome de Jesus, meu pai!!!
– Sai daqui desgraça, vá pregar sua religião de ladrão nos infernos...

Um de frente para o outro, olhavam-se, miravam-se, estudavam alguma estratégia de luta para impor sobre o adversário. O branco xingou o negro, que sempre calado, mostrou o dedo médio em riste. A platéia em êxtase incentivava xingando-os também. Do lado de fora da roda uma dupla de ladrões fazia descuido; o vendedor de cafezinho viu tudo, mas ao perceber o olhar satânico que um dos descuidistas dispensava para ele, fez vistas grossas e se afastou com suas garrafas térmicas de café. Do outro lado, na esquina da rua Saldanha da Gama, uma prostituta assediava um gringo apalermado com a arquitetura renascentista do Pelourinho. Ela ofereceu um boquete por cinco. Ele riu e foi embora, talvez não tenha entendido. Como não? A linguagem da putaria é universal. A luta recomeçou no meio da roda, no centro do Terreiro de Jesus. O negro deu um soco na testa do branco, que rodopiou, mas ao rodar o corpo, levantou uma das pernas que acertou o outro na região dos rins. O negro sentiu muito esse golpe inesperado, mas era mais duro do que qualquer escravo capoeira e repetiu o soco de cima para baixo no cocuruto do branco que mostrou a língua e caiu. A platéia urrava, gritava, ria e apostava.
– Levanta, pôrra...
– Olhe, desgraça, não posso perder meu dinheiro não, viu?
– Mete a pôrra nele, picolé de betume.
O negro em atitude de misericórdia pulou, girou no ar e desceu com mais um martelo no mesmo lugar em que dera o murro. O branco estava vencido, não havia mais força para levantar e partir para cima do negro. A platéia ria, aplaudia e cobrava uns aos outros. Uma senhora que ia passando para a missa, viu a cena derradeira e perguntou a um dos que assistiam a luta.
– Mas pra que isso?
– Passatempo, minha senhora, passatempo...
Afinal os dois ladrões roubaram o gringo...


Carlos Vilarinho-outubro 2009