sábado, 23 de janeiro de 2010

A PELEJA DO SINDICATO CONTRA O DIABO

Zuco completou cinquenta e sete na última semana, há vinte anos tornou-se alcoólatra depois de encontrar sua mulher enfiada na cama com um jovem universitário. Naquele dia a vida acabara para Zuco que ganhava trinta salários mínimo, era coordenador no Pólo Petroquímico de Camaçari dos operadores de alguma coisa lá por dentro das empresas que o compunham. Não tinha filhos e se apaixonara por Edezuíta, sua mulher, quando a conheceu no puteiro da Gameleira, perto da Ladeira da Montanha e Praça Castro Alves, em Salvador. A devoradora de homens prometeu a Zuco amor eterno e fidelidade sutilmente com os dedos cruzados nessa hora. Zuco acreditou e construiu uma casa com tijolos de vidro dividindo a sala de jantar e a de visita, dois andares e suíte nos cinco quartos em Cosme de Farias, bairro pobre do centro da cidade. Aliás, dizem as línguas, hoje em dia Cosme de Farias é o paraíso das putas, houve uma proliferação insana e sensata, paradoxo estranho que os homens apreciaram de verdade. Há o pensamento que o próprio Cosme de Farias se vivo estivesse, conhecido como advogado dos pobres, sujeito de ilibada conduta e de caráter acima da ordem, aceitaria e daria guarida e proteção às moças que tanto servem aos homens com tamanha ternura e prazer da carne. Edezuíta recebia sempre suas amigas de antiga profissão e não economizava na fartura. Zuco fazia gosto e dava conselhos as que ainda estavam na luta diária.

Mas Zuco não suportou a traição, chorou e bebeu vinte e um dias seguidos. Começou a faltar no trabalho e voltava para casa apreensivo e receoso de novas descobertas. No entanto um vizinho próximo, chamado Gumercindo, porteiro de um prédio no nobre bairro da Graça e que gostava da amizade do Coordenador de operadores, disse-lhe cheio de dedos que Edezuíta fazia aquilo há muito tempo, inclusive ele, Gumercindo, tinha sido seduzido. Não cedeu pela consideração e admiração que tinha com o amigo. Zuco ao saber de mais essa enveredou de vez na maldita. Aos poucos tudo perecia aos seus olhos, por dentro era uma gruta oca e escura que ecoava a todo o instante como um estribilho de carnaval a palavra “côrno”. Começava a beber às sete da manhã, esqueceu do Pólo Petroquímico e quando o dinheiro acabou juntou-se a outros três traídos como ele e começaram a formar o sindicato da cachaça contra as mulheres ingratas. A revolta de Zuco, o mais novo côrno, era tanta que ele tentou ser gay. Encachaçado, arriou as calças e pediu para Gumercindo o amigo mais próximo e que era nutrido entre ambos uma certa ternura que não o considerasse dessa vez, empurrasse tudo. O vizinho, diante daquele ânus desnudo, sentiu nojo e se arrependeu de não ter empurrado tudo em Edezuíta. O desespero tomou Zuco por inteiro, perdeu a verdadeira amizade do bom vizinho Gumercindo que evidentemente depois daquela cena repugnante somado ao desprezo que tinha dos homos, o que muitos dizem ser preconceito de machão no armário, não deu mais bola, nem mole para Zuco. Dizem lá em Cosme de Farias que Gumercindo vive com Edezuíta lá em Cajazeiras. Houve, depois de uns três meses daquela cena grotesca das calças arriadas, o espetacular flagra da esposa do porteiro: os dois, Gumercindo e Edezuíta, enroscados um no outro na antiga cama do ex-amigo e agora alcoólatra, quase gay. Sabe-se lá se é verdade, o fato é que os dois sumiram de Cosme de Farias.

O sindicato ganhou força e confiança com a presença do côrno ilustre e que era o mais bem pago entre tantos. No entanto não pingava mais grandes somas para o bolso de Zuco que perdeu também a conta do banco onde era cliente há quase vinte anos. Desde pequenino quando começou a trabalhar numa livraria na Praça da Sé. Tempos que os escritores eram lidos e suas obras faladas e discutidas em cada canto da cidade da Bahia. Hoje, ao que se consta, os livros estão em guerra contra a indústria do famigerado pagode de conotação sexual fomentado pela própria mídia em descaso da transformação social. Foi o que disse um poeta que também fazia parte do sindicato da cachaça e o único que não era côrno.

Sem dinheiro e dormindo num quarto imundo em companhia de Sabará e Nariz de Venta, respectivamente diretores do sindicato, Zuco passava os dias esmolando e ao entrar em alta embriaguez clamava por Edezuíta com a voz embargada e chorando a dor de côrno mais doída que a Rua Cosme de Farias atestara. Bebia tanto que às vezes não conseguia chegar ao quartinho imundo e dormia pela rua mesmo. Um pastor de uma igreja evangélica e que se dizia ex-ladrão e ex-maconheiro, comentou na igreja que vira da sua janela às duas da manhã Zuco sendo currado por dois ladrões pretos. A conversa ganhou a rua inteira, pois beato e beata que se prezam não guardam segredo, sobretudo dos pecadores, sentença também saída da boca do poeta que não era côrno mas vivia bêbado colando palavras em versos e em frases como aquelas. Em face disso, depois dessa suposta falácia nascida no salão de uma igreja evangélica, Zuco era carregado por Nariz de Venta que era o mais forte e o que mais demorava de ficar bêbado. Aliás, essa foi a plataforma usada pelos alcoólatras para eleger Nariz de Venta presidente do sindicato da cachaça em Cosme de Farias e Zuco mentor intelectual. Passou a acordar mais cedo, o dia ainda não dava bolas para o sol e lá estavam Zuco e Nariz de Venta, geralmente eles dois, pois Sabará não se agüentava em pé, levava quarenta a cinquenta minutos para levantar do chão frio que dormia, à caça de cachaça que eram arriadas nos trabalhos de candomblé para o Exu Tranca Rua. Um dia Sabará conseguiu se levantar a tempo de acompanhar os dois na empreitada. Meio dormindo, meio acordado ao chegar à encruzilhada do Exu deu para tremer e urinou-se. Começou a gaguejar e disse que estava vendo o Exu entornar a cachaça. Em sucinta narrativa, Sabará dizia o que via:

– Virge Nossa senhora, valei-me meu pai...
– O que é homem?
– O bicho tá ali...O bicho tá ali...
– Sabará você não está em condições de nos acompanhar mais, isso é delirium... Tem que internar o homem... – Disse-lhe Zuco para o homem que de amarelado pela cachaça foi esverdeando de medo e antes de cair duro disse:
– É vem ele, ele tá vindo, é horrível, ele tá dizendo que é a própria desgraça, ele quer pegar você, Zuco, a ideia foi sua... A ideia foi sua, ele que tá dizendo... Virge Nossa Senhora, tá bem aqui...Aiaiaiaiai, é ele mesmo, você Zuco... É você, ele tá retado com você... A ideia foi sua, ele sabe de tudo...
– Que ideia?
– A ideia de roubar a cachaça dos bichos...

O coração de Sabará explodiu e ele morreu ali mesmo. Soube-se tempos depois por uma Mãe de Santo lá da Baixa do Brongo, em Brotas, que Exu Tranca Rua chegou ao inferno com Sabará puxado pela coleira e o diabo em pessoa o recebeu. Mesmo assim não satisfeito soltou fogo pelas ventas horríveis e satânicas e gritou alto para os céus “Eu quero Zuco e aquele poeta cheio de semântica que vive dizendo que você, Senhor, não existe, e não esse desgraçado com bafo de combustível e cara de oreba que vocês me mandaram...” a ira das trevas foi tão grande que os quartinhos dos exus em todos os candomblés da Bahia chegaram a temperatura de cem graus.

Aqui na terra, alheio aos encantos e magias naturais, mesmo porque era e sempre foi descrente, Zuco e o sindicato lamentavam a morte do amigo Sabará. No entanto as palavras e a cara de horror do amigo morto não saiam da cabeça de Nariz de Venta que um dia antes de ser côrno viu a mulher que o traía receber uma entidade que se dizia Padilha, e num lance de segundos reparou bem rente ao corpo da mulher traidora a imagem da tal Padilha rindo e dizendo a ele que ia se aproveitar daquele corpo. Depois desse dia Nariz de Venta foi côrno até embaixo d’água, a mulher se transformava de uma hora para outra, não podia ver um homem que arrastava para um canto, qualquer que fosse o canto. Fizeram um evento monástico em homenagem a Sabará, o poeta que não acreditava em Deus fora seminarista por promessa de mãe, a mãe morreu ele rebelou-se do rebanho e desde então vive poetando dizendo que Deus não existe. O poeta celebrou o momento eclesiástico "em águas" no meio da rua na escadinha que dá acesso ao Bonocô onde as reuniões do sindicato se realizavam.
Enquanto isso o diabo exigiu que todos os Exus cachaceiros trouxessem para o inferno o côrno Zuco que era abençoado e dono de pureza inigualável por isso casou com uma meretriz e o poeta que não acreditava nem em Deus nem no diabo, isso o enfureceu. Uns três meses depois, Zuco, Nariz de Venta e o poeta andavam a esmo numa passarela do Bonocô lá perto do Brongo. Foram avisados pela mãe de santo Licinha de Yansã para não roubarem mais a cachaça do Exu Tranca Rua que ele estava de olho nos três. Nariz de Venta foi o primeiro a recuar e disse:

– Isso é verdade, esses monstros vivem atrás de nós e Sabará tinha razão, tenho sentido alguém nos espiar lá do outro mundo.
Poeta e Zuco gargalharam e ao pedir as horas a um homem de chapéu cobrindo o rosto e todo de preto que passavam por eles na passarela, eis a surpresa:
– É a hora de levar vocês comigo...

O espectro franzino e que aparentava pouca força ou força nenhuma ergueu os dois, Zuco e poeta, com relativa facilidade ante os olhos cheios de medo, terror e crédulos de Nariz de Venta que foi o primeiro a desmaiar. A força do Exu era tanta que ante o desmaio dos líderes intelectuais do sindicato a entidade de rua levou os dois inconscientes a presença do diabo. O rei das trevas esbravejou, queria os dois mortos para então engolir a alma, eis que num arroubo de monastério o poeta recitou o corvo e disse-lhe:

–Perdi em outrora tantos amigos tão leais, perderei também este em regressando a aurora... Nunca mais...”

O diabo inculto, estúpido e ignorante, não conhecia aqueles versos de tão fabuloso escritor, Zuco por sua vez olhando nos olhos do cão infeliz disse-lhe:

– Não tenho medo de mais nada, nem de você horrenda criatura...

E assim o diabo incrédulo com a petulância de um poeta e um côrno desgarrado, pôs-se a chorar...

Carlos Vilarinho 2010

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