quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

LAVAGEM DO BONFIM

Afonso descia a ladeira da Preguiça ressaquiado da noitada anterior regada a pó e whysk red label. Alquebrado e seco por dentro, o jornalista precisava hidratar-se para agüentar a caminhada da festa e buscar algo de relativa essência e substancial para o jornal. Ele mesmo repetia sempre que as festas da Bahia eram balaios de gatos em tetos de zinco quente.

– Com a sua licença, senhor Tennessee...

Aquele sol na moleira fazia Afonso delirar.

–De onde vem os monstros, meu Deus?

Um roda de pagode com sete ou oito homens cantando e rebolando, outros mais na frente cantavam o hino ao senhor do Bonfim num misto de fé e profanação. O sino da igreja da Nossa Senhora da Conceição badalava, os fies saíam para a procissão. As baianas a postos, os sacerdotes também, representantes de outras religiões definiam eclesiasticamente a aproximação de todos numa única fé. Afonso bebeu duas garrafinhas de água enquanto olhava um grupo de baianas travestidas. Esbarrou-se numa mulher com uma flor vermelha na cabeça. Ainda em fissura da noite anterior, Afonso concentrou-se, jogou água em volta do corpo, esfregou os olhos e assuou sangue pelo nariz. Viu os políticos que aproveitam a festa para ficar perto do povo, encorajando-os a votar, engodo infeliz e usurpador. Aprumou-se e continuou andando para o Mercado Modelo, onde uma multidão sorvia-se de cerveja, suor e beijos molhados. Teve ânsia de vômito quando uma negrinha serelepe com um curtíssimo short entrando pelas beiradas glúteas ofereceu acarajé em flerte natural da Bahia em festa religiosa. Preferia um tiro de cocaína ardente. Pensou em calafetar cada rua e beco do Comércio da Cidade Baixa para conseguir escrever algo sobre a festa. Uma crônica, um conto, até um poema, que Afonso dizia ser de difícil engenhosidade. Mas começar por onde naquele mundo de quinhentas mil pessoas embaixo do sol escaldante da Cidade da Bahia? Haveria no mínimo um milhão de histórias a ser contadas e outras milhões que aconteceriam para contar em outra oportunidade. A mulher com a flor vermelha na cabeça apareceu em sua frente novamente, não se esbarraram, mas notaram-se um ao outro. O jornalista não queria mulher naqueles instantes, ainda estava travado de pó e o tesão escondia-se por dentro das calças que até para mijar era difícil de achá-lo, todo encolhido e inibido consequencia de tanto aspirar. Resolveu beber cerveja e olhar as pessoas. Viu quando alguns timbaleiros passaram correndo e arrastando a multidão, em sua maioria jovens saudáveis e brancos. Olhou a roda de capoeira do Mercado Modelo e lembrou da história contada por um velho barraqueiro do mercado, já morto:

– Foi pernada pra tudo quanto é lugar, meu filho... Esses aí? Capoeirista nada, os meninos da Baixa do Petróleo vieram aqui e quebraram eles na capoeira, todos eles aí, ó... Correram para a Ladeira da Montanha e quem os defendeu foram as putas...

Ao chegar à Praça Marechal Deodoro sentiu vertigens e um quase desmaio o levou. Se agarrou a um poste e procurou o Beco onde fica o Palácio dos Gatos. Bebeu água novamente e observou as pessoas que bebiam cervejas,whisky e cachaça á vontade com o gosto de festa de largo. Encontrou Maroca, pensou ser a salvação para dar um tiro de pó e conversar algo que despertasse o start do texto que precisava.

– Você é maluco? Vem pra debaixo de um sol desse trabalhar e ainda por cima travado? Pára com isso, cara... Tô fora, fui...

Viu novamente a mulher com a flor vermelha na cabeça, desde que se esbarraram a feição dos dois não mudara. Ele ressaquiado, sem vontade de nada, inerte, sem raciocínio e ela, por algum motivo, séria e agora, ele com mais calma, notou um desafio em seu semblante de mulher bonita e contrariada.

– O que será que aquela criatura procura?

As baianas travestidas saíram do Palácio dos Gatos, todos os homens divertindo-se e quiçá querendo de fato tornar-se mulher. Novamente outra roda de capoeira, dessa vez de turistas estrangeiros.

– Que loucura, o mundo inteiro quer se portar como escravo capoeira.

Faltava algo naqueles capoeiristas que Afonso de imediato percebeu: a falta de cor, o suor, a ginga e a linguagem não eram originais. Esperto percebeu que o pensamento dava sinal de via de regra, de uniformidade. Aproveitou o ensejo e começou a trabalhar. Escreveu na mente a capoeira. Mas queria mais, queria algo que mexesse com o povo na essência, que houvesse transformação. A capoeira transformara os gringos, veja só! Deu um muxoxo indignado e seguiu para Água de Meninos, Feira de São Joaquim. Chupou laranja e melancia, bebeu água de coco. Reidratou e esqueceu o pó. Pagode e samba em todo canto da Cidade Baixa, ficou em baixo do jato de água dos bombeiros da Calçada e foi à Praia do Cantagalo.

– Lá com certeza acharei algo para escrever... Se não o pessoal da edição vai me matar, posso até perder essa boquinha no jornal... Tenho que escrever alguma coisa da Lavagem do Bonfim.

Os mesmos, digam-se, as mesmas baianas travestidas novamente em seu caminho. Entrou num boteco para esconder-se do sol. Cheiro de fritura, cigarro, arroto, homem suado e cerveja. Novamente a mulher com a flor vermelha na cabeça. Olharam-se. Afonso ia ensaiar um cumprimento, mas desistiu. Lembrou da negrinha serelepe do acarajé que ele deixara para trás. Queria uma mulher agora. Mas foi um desejo efêmero, perguntou-se inexoravelmente como poderia divertir-se e trabalhar com as vítimas do Haiti precisando dele. Precisando de todos que ali estavam.

– É a natureza dando a resposta aos bostas.

Decidiu ir andando pela Praia do Cantagalo, saiu do circuito central, ficaria longe da multidão, dos gringos colonizadores e de riso fácil, como entende muito bem o que quer. Comer as negrinhas. Tinha um grupo de maconheiros na praia, havia um conhecido dos tempos de baba da faculdade.

– Afonso! Vai dar dois?
– Oi... Quero não...

Chegou ao Largo de Roma, nada tinha acontecido, ao mesmo tempo tudo rolava ao seu redor, mas o jornalista não tinha ideia do texto, não sabia o que escrever. Todos os temas do mundo ali em sua frente: pobreza, riqueza, nojeira, preconceito, beleza, coisas que dão barato, pederastia, pedofilia, políticos ladrões, políticos que se dizem honestos, sabe-se lá... Ladrões que tinham genes de ladrão... Afonso estava indignado com tudo aquilo e não conseguia entrar em algo para escrever.
Mas a mulher com a flor vermelha na cabeça tinha algo a revelar, só podia ter.

– Essa criatura... O que ela quer, afinal? O tempo todo com uma insatisfação parecida com a minha...

Finalmente depois de sete quilômetros, Afonso entrava na Avenida Dendezeiro, via a sagrada colina e a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim no alto. Sentia que estava sendo levado e agora, ao mesmo tempo, notou que havia algo no ar. Buscou, olhou ao redor mais uma vez entre centenas que já fizera. Seus olhos caíram numa moça bonita que passava em sua frente, a moça virou de repente e soltou um beijo em sua direção. Ele riu, mas não acompanhou, ainda sem tesão. A moça ao se afastar lamentou dando de ombros. Cena comum nas festas baianas. Olhou, continuou olhando, seu sensor de escrita estava forte e dava sinal de alerta. A mulher com a flor vermelha no cabelo.

– É ela... Ela vai me dar esse texto.

Manteve distância, o grupo das baianas travestidas também estava próximo, passou pelo Colégio da Polícia Militar. Comprou uma cerveja e saiu andando. A mulher com a flor vermelha no cabelo estava na manha, matreira, sorrateira, como uma cobra na hora do bote. Havia visto algo. Afonso procurava. Muita gente na frente, subindo, descendo, nos lados, nas casas, nas varandas, os bares entupidos, feijão, dobradinha, farinha. Gritos, sussurros, beijos, coladas. Ela viu algo. Não conseguiu chegar, muita gente. Passaram pela Baixa do Bonfim. Subiram a colina. A igreja ficava à direita, foram para esquerda. Como quem vai para a Pedra Furada. O beco da viadagem. As baianas travestidas. Dois se beijavam. O flagrante.
A mulher com a flor vermelha no cabelo.

– Vagabundo... É assim que você é homem? Pendurado nos beiços de outro macho? É assim que você não dá conta de mim, safado... Viado, descarado...

A correria foi geral, ele saiu correndo em direção a Humaitá, ela atrás junto com uma multidão embriagada e ávida para ver e saber dos problemas alheios.
Afonso mandou o texto assim que chegou em casa, levou meia hora para escrever. Depois se jogou na cama extasiado e indignado com o mundo que só pensava em festas.

– A natureza dará a resposta aos bostas...

Carlos Vilarinho 2010

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